quarta-feira, março 29, 2006

 

O MAU JESUS DE BRAGA *

Tenho muita dificuldade em me ressentir. Diz o povo que "quem não se sente não é filho de boa gente". Deve ser isso. A minha mãe também não se "sentia" e ensinou-me a fazê-lo. A perdoar. A relevar. Com todo o espírito cristão. Pois isso é tudo uma grande treta! Qual dar a outra face! E o "ama o próximo como a ti mesmo"? Não conta? Como posso ignorar o mal que me fazem? Como posso amar-me e, consequentemente, amar o próximo, se não me proteger, se não me mimar, se não me tratar bem? Pois! Mas isso é nos ensaios, quando ainda se está de texto na mão, a decorar falas e posições no palco.... E vou protelando datas, adiando a estreia. Ou então, muito convenientemente, vou encontrando vantagens no mal que me fizeram. E, talvez de propósito, com propósito, elas estão lá. Sempre.

Ainda agora me aconteceu. Cobarde como sou, não tinha tido a coragem de enfrentar o meu irmão (figura de referência por ter herdado o papel de pai, mãe e irmão mais velho) , contar-lhe a minha vida, falar-lhe de como sou feliz com o amor que vivo. Temia o seu juízo, o seu sarcasmo, antecipava uma atitude primitiva, boçal. Receava que exercesse o poder de que o invisto para me magoar.

Mas verificou-se um episódio da lei "mal conduz a benefício". Inesperadamente, sou confrontada com a realidade. Alguém que me quer bem, de forma absolutamente ilegítima, traiçoeira, perversa, mal-formada, ressabiada, infantil, cretina, contou ao meu irmão alguns dos meus segredos. Resultados? No essencial, dois. O primeiro, que não me interessa mas é relevante, tem a ver com a ideia com que o mano ficou da pessoa em causa. Penso que ele usou a expressão "mau fundo"... Mas o que me encheu duma luz que me fez arder o peito, foi sentir aqueles olhos que entram por mim adentro e que me fazem sempre sentir minúscula, a transbordar de compreensão, de aceitação, de incondicional e inquestionável amor. E as palavras batidas no enredo do filme dos outros mas que na nossa vida são tão originais: "Só quero que sejas feliz".

* Conversa dela no fim-de-semana: "Porque não é só o Jesus de Braga? Não há um mau Jesus..."

quarta-feira, março 22, 2006

 

DE ORELHA MURCHA

É como estou e é muito bem-feita! O post anterior estava cheio de erros ortográficos! Que vergonha... Para que aprendas! Entre outras coisas, a ser mais tolerante. Que mania esta de ter um lápis encarnado nos miolos a fazer certos e cruzes naquilo que leio!... Pois hoje serviu-te em casa...

terça-feira, março 21, 2006

 

MARIA AMÉLIA

Tive sempre muitas amigas. Meninas. Que os rapazes tinham predilecção por brincadeiras estúpidas e que davam muito trabalho. A primeira de todas chamava-se Helena Soraya, era loira e tão branca que eu vivia encandeada de olhos postos naquele meu raio de sol. No Jardim-Escola escondíamo-nos por trás do imbondeiro e dávamos beijos: línguas em riste, a tocarem-se só nas pontinhas, o calor assim gerado a espalhar-se pelo corpo todo. Tínhamos 3, 4, 5 anos. No início da primária fiz uma concessão. Aceitei como parceiro de folias o meu primo. Pesadão, gordalhufo, ainda tinha menos propensão para brincadeiras de meninos do que eu... mas também não dávamos beijos nem nos esfregávamos um no outro. Tornava-se aborrecido... Na 2.ª classe estava tão apaixonada pelo menino mais bonito da sala e tão atarefada a fugir do Zé António, cigano temido que me sussurrava todos os dias "vou-te foder" e que acabou por morrer atropelado anos mais tarde, decerto ainda no efeito das pragas que lhe roguei, que nem tive disponibilidade para amizades.

O corrupio começou 1 ou 2 anos mais tarde. Foi a D. que, invejosa das minhas maminhas já espetadas, se deixou convencer a sujeitar-se ao tratamento da bomba de tirar leite. Não consigo imaginar a dor que lhe devia causar, os carocinhos sugados, sugados, sugados e eu libidinosamente feliz, a apertar a borracha. A O., calada, maria-rapaz, que acedia em deitar-se na minha cama e me fazia inventar mil maneiras de a seduzir. A A. V. com quem eu perseguia o Félix, empregado de casa, de saias no ar, sem cuecas, aos gritos de "vê, vê e agora mostra-nos a tua pila" e com quem li o "inacessível" "Nós dois e o Sexo", um incipiente Kamasutra da minha mãe. A A., muito senhora, muito vaidosa, que mudava de roupa à hora do almoço e pintava as unhas de encarnado. Por causa dela, obriguei a minha mãe a assinar um papel em que se comprometia a autorizar-me pintar as unhas das cores que eu quisesse a partir dos 15 anos... A paixão pela L., aos 13 anos, quase me consumiu. E depois a I., no ano a seguir. E depois... uma série de outras, que me deixavam sempre rendida. Ou porque me deslumbrava com elas e ficava suspensa da sua atenção ou porque se deslumbravam comigo a ponto de me deixarem ser má, mesquinha, prepotente, desprezá-las de forma insuportável mas perversamente feliz.

A algumas destas amigas perdi o rasto. Outras ainda fazem parte da minha vida, de forma mais ou menos intensa, em graus variáveis de contacto. Regra geral, mantém-se a tónica das nossas relações, o tipo de equilíbrio que as caracterizava. De todas elas, há uma que é única. Tão especial que me faz sentir fisicamente o laço que nos une. Não é laço. É um cordão forte e inviolável. Incorruptível. Tínhamos 10 anos quando a conheci. Era tão independente, tão autónoma, tão decidida que, de imediato, me deixou presa. Sabia tantas coisas. Conhecia tantas músicas. O mundo dela era tão grande. Antes de nos separarmos, com um oceano pelo meio, passou uma tarde comigo. Despediu-se toda solta, sem demonstrar perceber que eu estava a chorar tanto por dentro, a morder-me toda para não dar parte de fraca, mariquinhas-pé-de-salsa. Fiquei a vê-la descer a rua, no passo decidido do costume. Durante anos não lhe perdoei não se ter voltado para mais um aceno. Voltámos a encontrar-nos, sempre de fugida, entre viagens, com espaços de anos. Às vezes escrevíamo-nos e foi assim que fui sabendo das suas sucessivas perdas. Contei-lhe tudo da minha vida, com uma confiança que dedico apenas a alguns, cobarde que sou. Sem medo de nada. Nem do julgamento dela nem do mal que pudesse fazer-me por ser detentora de tanto da minha intimidade.

Faz hoje uma semana que estive com ela. Já não a via há 9 anos. E no abraço que lhe dei estava lá tudo. E recebi tudo também.

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