sábado, janeiro 22, 2011

 

PRIVILÉGIOS DE FILHA

Uma vez disseram-me que, sendo eu uma filha predilecta de Deus, nada do que lhe pedisse me seria alguma vez recusado.

Ao contrário de me deixar descansada e confiante, aquela afirmação só concorreu para acicatar as minhas dúvidas e acentuar a minha noção de responsabilidade.

Primeiro: porque serei eu uma filha predilecta de Deus? Talvez porque me porte de acordo com o que ele acha bem. Caramba... tenho de ter cuidado então.

Segundo: porque nada me será recusado? Talvez porque seja sempre muito sensata no que peço. Caramba... tenho de ter cuidado então.

Mas se sou filha - e ainda mais das predilectas - não me será permitido arriscar? Não terá chegado o tempo de acreditar que posso pedir tudo, sem filtro, sem censura, só porque é o que preciso desesperadamente? Sem medo de, depois, não saber viver com o "não", se ele vier? Porque, enquanto pai, se não me der a resposta que quero, é porque entende que não é o melhor para mim. E há-de encontrar forma de me ajudar a ver isso mesmo, enquanto me senta nos seus joelhos, encosta a minha cansada cabeça no seu peito e me enche do seu Amor.

sexta-feira, janeiro 21, 2011

 

DEIXAR FALAR OS DEMÓNIOS

Sempre me acusaram de ser demasiado voluntariosa na forma como tomo decisões. Muitas vezes, fui chamada à atenção por não levar em linha de conta a opinião de quem acaba por ser arrastado, sem espaço para expressão própria, para as escolhas que faço, para aquilo a que me proponho.

Durante anos, foi-me impossível pedir ajuda, fosse para o que fosse, desde as coisas mais prosaicas aos assuntos mais sérios e, ainda mais, aceitá-la. Alguns anos de terapia depois, sou hoje um pouco mais capaz, embora ainda não me seja absolutamente confortável encontrar-me em situações do género que, muito estupidamente, me fazem sentir uma vulnerabilidade que me assusta. Profissionalmente melhorei bastante: apesar da minha mania de que não há quem faça melhor do que eu (e o povo não ajuda quando adagia que "se queres bem feito, fá-lo tu") já consigo delegar, já consigo acreditar que outros podem fazer, tanto - mas ainda não tão bem - quanto eu.

Ontem tomei contacto com partes de mim que, em certa medida, podem "explicar" porque sou assim. E quando algo se torna consciente e estamos empenhados num compromisso de responsabilidade, não podemos senão encarar os demónios que nos habitam e acolhê-los como nossos.

Desde muito pequena que fui sobre-responsabilizada. Tinha 4 anos quando, por castigo, fui obrigada a subir sozinha num elevador, por ter partido uns copos que a minha mãe acabara de comprar e cujo transporte entregara aos meus cuidados... Aos 15 anos, fiquei a viver por minha conta, sem ninguém, com um orçamento mensal disponível superior ao dos meus colegas do liceu em, pelo menos, 500%, com os pais a 7000 km de distância, com quem falava, ao telefone e com sorte, uma vez por mês. Podia tudo. E por isso, sentia o peso de não poder nada. Nunca me perdoariam qualquer quebra da confiança depositada em mim. Havia sido criada, educada, moldada para cumprir o que era esperado. Não havia pior pecado do que ignorar os talentos com que deus pai nosso senhor nos tinha brindado. E isso incluía ser capaz de, competentemente, tomar conta de mim. E fazia noitadas mas não faltava a uma aula. E fumava charros e tomava speeds mas tinha óptimas notas. E não comia mas era gorda.

Aprendi muito cedo que só podia contar comigo. Que o colo era bom mas condicionado ao meu desempenho. Que, se queria (e se eu era de querer, até porque outra coisa não me seria permitida) tinha que me esgadanhar para o conseguir. Sempre a história dos talentos a render. E foi assim que aprendi a não precisar de ninguém, para não ter de tropeçar na ausência. Desenvolvi mil capacidades e competências (há dias chamaram-me centro comercial, tal é o número e diversidade de coisas que sei fazer e de serviços que posso prestar). Para ser auto-suficiente. Para garantir a minha sobrevivência mesmo no mais inóspito lugar do mundo que era onde eu vivia.

E por ser tanto aquilo a que tinha de dar atenção, não tive nunca tempo para abrir espaço para uma alteração do que vivia. Acho que nem nunca me passou pela cabeça que pudesse haver outras formas de vida. Por defesa e sentido de eficácia, aprendi a ser arrogante, a decidir sozinha, a "pôr e dispor" de tudo na minha vida. E sem tempo a perder. Para não ser atropelada pelos acontecimentos. Habituei-me a conseguir tudo o que queria no momento seguinte à tomada de consciência do querer. Só dependia de mim, não é verdade? Quero. Tenho. Já.

Ontem, os demónios que me vêm atazanando há meses, deram-me a notícia que, intimamente, eu já conhecia mas temia enfrentar: as coisas já não são assim, maria carolina. Quiseste aprender a confiar, não foi? Achaste que te podias permitir contar com, partilhar, acreditar no outro? Pois é... com isso vem uma coisa que se chama entregar. E fazê-lo, mas fazê-lo bem, significa que não és tu que controlas nada. Que não és tu que decides. Não és tu que dizes quando. Tens, agora, finalmente, a última prova para superar, nesse assumir pleno de quem és a que te propuseste. A espera. A derradeira barreira que te separa da entrega total. Aprende. Aguenta. Segura-te. ESPERA.

terça-feira, janeiro 18, 2011

 

CTRL+ALT+DEL

Chegou com aquele vinco entre as sobrancelhas, o sorriso de sempre, o olhar directo, franco, de pessoa em quem se confia. Detenho-me um pouco a observá-la, menos disfarçadamente do que sempre faço e apercebo-me de há qualquer coisa que não joga. O conjunto é harmonioso, agradável. Mas aquele cenho franzido não condiz com o sorriso aberto. E os olhos... brilham de quê?

Dou-lhe silêncio. Abro em mim aquele espaço interior que só existe neste espaço físico. Naquele momento, somos "dois animais num quarto", em plena sintonia. Preparo-me para o que aí vem. Por mais vezes que o faça, por mais anos que passem, é sempre uma surpresa. E, hoje, sei que vai ser em grande. Sinto a densidade que se cria no ar entre nós. O canal da ressonância que fica no on.

Ela levanta a cabeça, olha-me bem fundo, ignorante da teoria subjacente ao processo em curso mas plenamente consciente do que nos faz sentir e, som por som, cada inflexão da voz dando conta da emoção subjacente, inicia o striptease à frente do espelho que sou eu.

Mas, de repente, já não sou espelho. Sou eu que me vejo reflectida ali. A dor é minha. O desalento é meu. É minha a procura do sentido. O desejo... há desejo? Apagar a memória. Entrar numa realidade de filme de ficção científica e poder orgulhosamente ser pioneira num lançamento no espaço desconhecido e cheio de perigos, em busca de novas galáxias. Ou testar pílulas douradas que permitem apagar qualquer memória, numa promessa dum agora novinho em folha. Ir, ir, ir. Embora daqui. Da vida que me zanga porque já nem sequer me cansa. "Começar de novo e contar comigo". Que tolice de conversa! Há lá outra forma de começar? A serenidade que advém das decisões que se tomam, das escolhas que se fazem. O tédio que se segue. A pergunta que se insinua e nos estraga a trip: para quê o esforço? Amanhã vou acordar de novo. Mais ou menos à mesma hora, nos mesmos lençóis, repetir os gestos de sempre sempre sempre sempre. Quanto da minha vida depende de mim, afinal? Quanto muda eu tomar firmemente as rédeas nas mãos? Eu ter a ilusão de que tomo firmemente as rédeas nas mãos... A única possibilidade de isso acontecer seria se só houvesse amanhã. E, talvez, um bocadinho do hoje, do agora. Para podermos preparar uma "bucha" para a viagem. De amanhã, claro.

sábado, janeiro 15, 2011

 

O NOJO

Há um momento em que olhamos para o espelho e a imagem que ele nos devolve não é de quem vive da fé. É de alguém que está prestes a perder toda a auto-estima, toda capacidade de sentir respeito por si próprio.

E é nesse momento que faz sentido que, ao luto, se chame nojo.

sexta-feira, janeiro 14, 2011

 

O PROVATÓRIO

Quando era pequena, a minha mãe ajoelhava-se todas as noites junto à minha cabeceira, do lado esquerdo, para rezarmos. Eu adorava aquele ritual: naquele momento a mãe era só minha, bebia-lhe o cheiro, sentia-lhe o hálito quente, os dedos longos e esguios a afagarem-me os cabelos. Durante muito tempo esse era o meu momento alto do dia. Ela ia dizendo os nomes das pessoas por quem pedíamos e eu repetia: "Pelo pai". "Pelo pai". "Pela professora Novita". "Pela professora Novita". Terminávamos sempre a pedir "pelos meus inimigos", que era algo que me fazia sentir qualquer coisa entre um anjo e uma santa. Pelo meio, havia um pedido que lembro-me de ter carecido de explicação, não sei ao fim de quantas repetições. Presumo que não muitas porque, passe a imodéstia, não era fácil porem-me a dizer coisas que não sabia o que significavam. Pedíamos "pelas almas do purgatório". Disseram-me que eram aquelas almas das pessoas que morriam e que não estavam nem no Inferno nem no Céu. Porque não tinham sido tão más que merecessem o fogo eterno mas também não tinham sido tão boas que tivessem ganho entrada directa no Céu. Algumas haveria, ainda, que só tinham cometido um ou outro pecadilho menor e que bastariam umas quantas orações de meninos puros e bem-comportados para ganharem o passe almejado. Ciente da importância que eu poderia ter na forma como as pobres das almas viveriam para sempre (que é mesmo infinito quando se tem 4 ou 5 anos), empenhava-me no fervor com que repetia essa parte da oração da noite.

Depois, ficava a pensar nos que nunca conseguiriam sair dali. O Inferno era um sítio tão mau que nem me atrevia a pensar nele, a não ser quando me descuidava e fazia alguma coisa passível de me enviar directa para lá. E ficava cheia de medo, pedia muito perdão e jurava tornar-me uma menina melhor, quanto mais não fosse para ir para o purgatório e ainda ter alguma chance de salvação. Mas e os que não teriam nunca? Como seria a vida naquele sítio? Só há poucos anos aprendi que o Limbo ainda é outro local porque, para mim, era tudo a mesma coisa: um terreno de "pendurados". De almas semi-penadas, à deriva, à mercê das orações que, na terra, os homens fizessem, ou ao cumprimento de uma pena indeterminada, sem datas para entrevistas de avaliação com um júri que determinasse a habilitação para a subida. E haveria o risco da descida? Seria que, no purgatório, se poderia cometer algum deslize que não só atrasasse o processo de purga mas, pior, levasse à emissão imediata de um salvo-conduto para o Inferno?

Ainda hoje, independentemente do que é para a Igreja Católica, para mim o purgatório é o pior dos lugares. Só consigo imaginar um lugar a branco e cinzento, nem preto sequer, com gente a deambular, de expressões vazias, de braços inúteis caídos ao longo do corpo mas cabeças erguidas em sinal de prontidão para aceitação dos desígnios. Totalmente ignorantes quanto ao seu destino final, cientes apenas da sua limitada capacidade de intervenção, sem regras nem normas nem sequer memorandos que estabeleçam o que pode ser considerado "um bom comportamento" que alivie a pena 2 séculos ou um "mau comportamento" que, inadvertidamente tido, os deixe para sempre (com a conotação que tinha aos 4 ou 5 anos) à espera.

E que sentido tem esse local? Para que serve, afinal? Pergunto-me eu, adulta. "É um local para se meter a mão na consciência" ouço a minha mãe sussurrar-me ao ouvido. E o que é isso, mãe? O que é meter a mão na consciência? "É percebermos que errámos. Que fizemos alguma coisa que não estava certa". Que pecámos? "Sim. Tudo o que fazemos que não está certo, sobretudo aos outros, pode ser visto como um pecado". Então, o purgatório é uma pena que se cumpre, mãe? "Podes vê-lo assim. É a tua oportunidade de te redimires. De assumires a tua culpa e de esperares, com humildade e espírito de abnegação que o tempo da remissão chegue. E se o fizeres com fé e convicção, talvez algumas orações que meninos puros e bem-comportados façam com as suas mães à noite, à cabeceira da cama, possam contribuir para te aliviar a espera".

quinta-feira, janeiro 13, 2011

 

EU EXIJO! E SOU FELIZ.

Durante anos diziam-me exigente. Amigos, amores, gente provisória e/ou passageira, mais cedo ou mais tarde atiravam-me com essa. Eu sentia-me ofendida, baralhada com a avaliação grosseira de quem, nitidamente, não tinha a menor noção do quão frustrada eu vivia por não ter coragem, melhor, por não sentir legitimidade para fazer qualquer tipo de exigência. Via-me sempre contente com o que condescendiam em oferecer-me, fosse em que área fosse, achando, ainda por cima, que devia ficar muito agradecida com o gesto. Exigente, eu? Exigentes eram aqueles a quem eu ouvia a voz, aqueles que andavam de cabeça muito erguida, como só a confiança de se ter direito a tudo permite. Exigentes eram aqueles que diziam "não" com a mesma facilidade com que diziam "sim". Bem... talvez eu até invejasse um pouco os que eram capazes de dizer mais vezes "não". Porque é o que se faz quando o que nos dão não nos satisfaz. Como se o "sim", a aceitação, não correspondesse a uma atitude (no sentido activo) mas, apenas, a um assentimento.

Mais tarde, num contexto muito específico, comecei a questionar a veracidade da minha exigência. Aceitei que, nesse tempo e nesse viver, talvez fosse exigente, com efeito. Ainda assim, tratei de encontrar uma razão que, não nascendo em mim, não me comprometia nem culpava: exigia na medida em que sabia que o outro podia dar. Era como se aquele comportamento que, na realidade, eu condenava (por isso me ofendia) tivesse a atenuante de corresponder à minha missão de ajudar o outro a pôr todos os talentos a render!...

Há dias, numa das imensas conversas que tenho tido nos últimos tempos, uma Amiga deixou-me a pensar. Falando acerca da mudança e consequente evolução que ocorre nas pessoas que se predispõem a isso, referiu a diferença entre "exigência" e "intransigência". E, como sempre me acontece, na minha cabeça, as peças de dominó desataram todas a cair, a fazer aqueles carreiros fantásticos, desenhando um percurso sinuoso mas tão bem encaixado.

O que eu fui, toda a vida, foi absolutamente intransigente: com os outros, comigo, com a vida toda. Rígida, quantas vezes monolítica, incapaz de me moldar às circunstâncias e de me colocar no lugar do outro para perceber como podiam ser sentidas as minhas, então chamadas "exigências". Por isso me ofendia, por isso me sentia lograda. Pudera!... Como pode ser satisfeito alguém intransigente? O que esse comportamento causa nos outros, caramba?

A intransigência, sim, é algo que atiro para cima dos outros. Sob o disfarce da satisfação das minhas necessidades, carrego a responsabilidade em ombros alheios, não permitindo que haja formas diferentes daquelas que fantasio e alimento, que podem viver no outro e vir ao meu encontro. Eu é que decido de que forma (e só daquela e mais nenhuma) o outro me vai dar o que eu quero.

Ao contrário, a exigência corresponde a uma atitude nobre, quanto mais não seja, pela responsabilidade que implica. Ao ser exigente, quer comigo quer com os outros quer com a vida em geral, comprometo-me com uma abertura às possibilidades de satisfação. Não interessa o caminho, não interessam os meios. Podem ser os mais diversos, tantos quantos outros eu tenha na minha vida. A exigência deve visar apenas o fim, a concretização do objectivo que me proponho atingir, a satisfação da necessidade que nasceu em mim. E, ao ser exigente, aumento a minha liberdade, a minha possibilidade de dizer "não", sem culpa nem frustração. Porque não fechei alternativas nem impus o meu rígido código de boas práticas para as respostas.

terça-feira, janeiro 11, 2011

 

STAR WARS

Parte III

No início, quando o Universo era Uno, Lúcifer fora o anjo preferido de Deus. No entanto, como um filho caprichoso, permitiu-se uma identificação tal com o pai que acabou por se achar, ele próprio, também Deus.


Ainda que com a dor do pai que castiga o filho predilecto, Deus baniu-o para as profundezas da terra, onde, longe da sua luz, imperava o breu e o gelo.


Lúcifer, para se aquecer, acendeu um pequeno fogo. A pouco e pouco, foi sentindo-se mais confortável, com luz e calor, o fogo cada vez maior. E, de repente, a meio de um gesto de esfregar as mãos... desatou a rir. E riu sem parar, quase a engasgar-se tal foi a excitação que lhe provocou a descoberta acabada de fazer: Deus, anterior Rei de tudo o que existia, havia acabado de dividir o Universo em dois!...



Parte II

Judas Iscariotes era o apóstolo preferido de Jesus. Na verdade, era o único que entendia a profundidade dos ensinamentos do profeta, aquele que sabia o que queria dizer "o meu reino não é deste mundo". Os outros, fiéis. Mas uma espécie de rebanho de ovelhas que ouviam e pastavam.


Foi por isso que Jesus pediu a Judas que lhe fizesse o favor de o ajudar a completar a sua missão na terra. Judas não queria aceitar a incumbência. Amava demasiado o mestre para ser o seu traidor. Mas Jesus fê-lo ver que seria o único, de entre todos os apóstolos, capaz de assumir a responsabilidade e, naturalmente, as consequências de tal acto, por lhe encontrar o sentido. E, assim, Judas tornou-se o banido, a encarnação do mal. E, de novo, o Universo ficou dividido: o Bem, imolado na cruz e o Mal, com o pagamento da traição num saco de moedas.



Parte I

Se divido entre o Mal e o Bem, perco. Quando aprendo que um e outro são apenas as duas faces do todo, ganho.

domingo, janeiro 09, 2011

 

A ESCOLHA COM SOFIA

Hoje falaram-me, em relação ao Amor, de algo que talvez já soubesse, ainda que nunca tivesse materializado em palavras: "Gostar tem de incluir o não-gostar". De outra forma, o gostar não é saudável, é apenas uma parte da totalidade que é amar.

Reflectir sobre isto levou-me a algo que não tinha tido o atrevimento de materializar sequer em ideia: perante a inevitabilidade de uma tomada de opção entre um ti e um mim, não hesitarei nunca na escolha.

 

A FONTE ONDE SE MATA A SEDE

Ainda a propósito da desilusão, dizia-me uma amiga, que alguma idealização do ser amado deve ser mantida, para que se assegure o interesse. Não concordo, de todo, como tive a oportunidade de lhe dizer. A idealização é assim como que uma espécie de discriminação positiva que, ainda que necessária quando se trata de repor alguns equilíbrios, não deixa de constituir uma atitude cuja natureza é, na essência, desequilibrada.

Quando idealizo o outro, distancio-me de quem ele realmente é e ponho-me mesmo a jeito para alimentar sentimentos de revolta e raiva por ele não corresponder às minhas expectativas. Penso que aquilo a que a minha amiga se referia constitui o espaço do outro que é, para mim, desconhecido e, até, misterioso. Esse espaço, sim, é essencial que exista e que possua a propriedade de renovação constante, para que seja infinito. É nesse espaço que me permito a surpresa, o encantamento, o ficar deslumbrada com tudo aquilo que é do outro e que ainda não conheço. Claro que é, também aí, que posso encontrar aquilo que me surpreende negativamente. De qualquer forma, é esse imenso e excitante território por desbravar que permite manter o interesse, o amor apaixonado, a vontade de partilhar a vida com alguém. Quando esse espaço se torna um terreno de águas paradas ou quando tudo o que vamos nele descobrindo são surpresas que não nos satisfazem, o interesse pelo outro fenece, acaba por atrofiar e, nos casos felizes, por morrer.

Digo felizes porque, às vezes, em vez de morrer, fica apenas moribundo, ligado a um ventilador alimentado a rotina e obrigações familiares.

terça-feira, janeiro 04, 2011

 

HERANÇA PATERNA

Aos 90 anos, deitado na cama de onde não se levantava há já um mês, o meu pai dizia, com um brilho único naqueles seus maravilhosos olhos azuis e o sorriso malandro de quando estava feliz: "Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida".

Porque me permiti aprender tão pouco com ele?

 

DESILUDE-ME. PARA QUE TE AME.

Há dias numa (boa) conversa sobre o amor, lembrei-me da tão batida frase de Saint-Exupéry "Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé". E ocorreu-me que, ou é uma ideia absolutamente perversa, ou eu nunca consegui entender o autor. Um bocado o que acontece com a Bíblia que é tão simples e os homens fazem-na tão complexa e usam-na como instrumento dos seus fins. Custa-me aceitar que aquele livro tão belo possa consistir em propaganda de uma forma errada de amar... Para mim, o acto de amar é absolutamente unívoco. Quem eu amo não tem qualquer responsabilidade nisso. Quem me cativou não tem qualquer obrigação para comigo. É uma coisa minha. E imaginar que o meu amor possa causar no outro qualquer sentido de responsabilidade é algo que, praticamente, me repugna. A responsabilidade é o acto de responder por. Como pode um outro responder pelo amor que qualquer alguém nutra por si? Isso é relegar o amor para um nível de troca. De crença em que tu me amas porque eu te fiz alguma coisa para que isso acontecesse. E, por isso, eu desempenhei um papel, eu arco com as consequências. E, muitas vezes... eu sofro! Amar é um verbo que não precisa de pronome reflexo. Claro que, quando o sentimento é correspondido, quando se dá o encontro mágico de almas, corpos, seres, ou qualquer outra instância humana que entre em uníssono, o paraíso vive-se na terra. Eu já soube como é.

Mas se a mensagem que a raposa passa ao Principezinho é, realmente, a de que o amor é uma prisão cheia de responsabilidades alheias, então eu tenho de lidar com a minha desilusão, por ter gostado tanto daquele livro. O que só pode ser uma coisa boa. Quando alguém me diz, com voz magoada "eu amava-o tanto e ele desiludiu-me!", respondo, com um sorriso que há-de parecer sádico mas que é, sobretudo, empático (e, admito, um pouco auto-satisfeito) "que bom! então é agora que vai saber se o ama verdadeiramente ou não". É que a desilusão é des-ilusão, ou seja, o desfazer da ilusão, da idealização que fazemos dos outros, o olhar sem filtro, a constatação das misérias alheias, das fraquezas e inseguranças, o encarar dos podres espalhados como que em praça pública.

Não acredito em amor sem desilusão. Já estive muitas vezes apaixonada nesta minha vida tão rica. Já amei de muitas maneiras. Já me dei e recebi em doses e formas diversas. Defendi-me como pude das desilusões, para não ter de tomar atitudes e poder continuar a viver como se nada fosse, até que as "coisas" caíssem de maduras ou me autorizasse a desempenhar o papel da compungida desiludida, lastimando a má sorte que me levara ao engano... tudo muito bem encenado numa peça de representações várias, em que eu era público e actor.

Sem ter sequer a menor noção do que é e para que serve ser verdadeiramente desiludido: levar-nos ao amor mais esclarecido, mais responsável, mais autêntico que pode haver.

domingo, janeiro 02, 2011

 

DIA ZERO

Ontem fui passar um bocado a um dos lugares mais mágicos que conheço. Onde se sentem cargas telúricas assim que lá se aporta. Onde, por muito perdidos que estejamos, se abrem brechas por onde a paz vai encontrando caminho para se imiscuir, até que toma conta de nós.

Fiquei a pensar na importância que dou aos sinais, aos acontecimentos ou situações que interpreto como avisos, chamadas de atenção ou simples notícia de que não estou só. Sempre disse que me estou nas tintas para o quanto isso pode fazer os outros pensar que sou uma tola sugestionável, uma fraca de espírito pronta para deixar que as escolhas sejam influenciadas por manifestações que nada significam mas a que quero dar uma razão. Admito que possa parece-lo. Quem me conhece, sabe bem que não sou uma tonta de todo e que também tenho a minha quota parte de pensamento racional. Na verdade, apenas conhecemos uma ínfima, mas mesmo muito ao nível das medidas nano, do que nos rodeia. Ainda que consigamos ver para além da realidade, do óbvio, pela capacidade de nos transcendermos e à matéria, fica muito mas muito mais no desconhecido. E verdadeiro ou falso, real ou imaginário, certo ou errado, são conceitos daquilo que conhecemos. Para além disso, deve haver muitos mais, que não comportamos. Na minha limitação, na minha ignorância de tais "conceitos", escolho criar um conjunto, uma espécie de caldeirão de magia, a que chamo "aquilo que me faz sentido". Essa passa a ser, em linguagem de humana limitada, a minha verdade.

E ao aperceber-me de forma tão clara das minhas limitações, também me confrontei com outra evidência: quem sou eu para saber exactamente o que pedir para mim? Que arrogância a minha pedir para ganhar uma bicicleta no próximo natal convencida que é exactamente disso que preciso para ser feliz... será que não sou capaz de perceber que estou a limitar as hipóteses infinitas que o universo tem guardadas para mim? Porque não lhe digo antes que preciso de um meio de locomoção? Porque me ponho em pontas de pés, convencida de que tudo sei a meu respeito e já tenho a cor escolhida, aquela que me assenta melhor? Aí sim! Tão tola... E se o universo tiver, lá no armazém dos brinquedos, uma bicicleta voadora, supersónica, feita numa liga desconhecida, mais leve que o ar, com uma etiqueta com o meu nome? Imagino o Senhor Universo a encolher os ombros, abanar a cabeça, suspirar e murmurar: "Coitadinha... outra que ainda não aprendeu!..." E, ainda que a contra-gosto, dar-me o que a minhas certezas pediram. Que desperdício, não?

Por isso, ontem, só me entreguei. Disse o que precisava, sem escolher marcas, cores, nem objectos. Ofereci o meu Ano Novo inteiro. Não é meu. Só vou ter o usufruto. E prometi tratar o melhor possível este templo que sou eu e em que tudo (me) acontece. Acho que subi um degrau na Fé.

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