terça-feira, novembro 23, 2010

 

A MORTE

Ontem vi-me, pela segunda vez na vida e no espaço de menos de um ano, perante a situação de ter de decidir como alguém, que não eu, vai morrer.

Até aos 30 anos, a morte - a minha morte - nunca me assustou. Descobri, depois, que a morte só mete medo aos muito infelizes ou aos muito felizes. Porque, abençoadamente, a partir de certa altura na vida, encontrei-me entre os segundos. E desatei a ter medo de andar de avião. De morrer no bloco operatório. De ter um AVC ou de tropeçar nas escadas e fazer um traumatismo craniano...

Aos muito infelizes - não aos muito tristes - também os atormenta a morte. Só é muito infeliz quem não tem nada dentro e, esse vazio, extravasa o corpo e prolonga-se no espaço, impedindo qualquer ideia de transcendência.

Já aos muito tristes, a morte aparece sedutora, misteriosa princesa das arábias envolta em sete véus, promessa de deleites e prazeres nunca vividos, de mundos a descobrir. É difícil resistir à tentação. Que é da carne e do espírito. Que só querem que a alma descanse em paz.

Devíamos poder decidir sempre. Devíamos, enquanto ainda sãos de mente, deixar inequivocamente clara a forma como queremos morrer, caso a morte não nos interpele de surpresa. Ninguém deveria ser obrigado a fazê-lo por nós. Mas, sobretudo, sobretudo, sobretudo, devíamos encarar esse acto como a expressão máxima e definitiva da nossa liberdade e auto-determinação.

segunda-feira, novembro 22, 2010

 

O QUE DÓI

Nos últimos dias tenho-me apercebido das diferenças entre saudade e nostalgia, sobretudo quanto ao grau de intensidade da dor causada por cada um daqueles sentimentos.

A saudade é proactiva: leva à procura do objecto em falta. Ainda que com impaciência, obstinação ou mesmo desespero. Remete-nos para um terreno de possibilidades. De promessas de satisfação - mais ou menos próxima ou mais ou menos distante - da fome sentida. Mesmo a saudade dos mortos é colmatada com a idealização que podemos fazer, até ao tutano seco das suas carcaças, de quem foram enquanto vivos, que já não há forma de nos desenganarmos. Ou desiludirmos. E vamos alimentando a saudade, até ser um bicho inchado de pança satisfeita.

A nostalgia é mulher infértil. Terra árida. Não permite mais nada que não a dor de se sentir que, o que foi, não será mais. Porque foi datado. Resultado das circunstâncias, da convergência de situações, correspondentemente carregadas com os afectos, as emoções e os sentires próprios de quem fomos e não voltaremos a ser. E não há idealização ou ilusão que se compadeça com a possibilidade do confronto com o real. E a dor - essa dor - é tão terrivelmente intensa que nos come por dentro.

Escava túneis tortuosos, bafientos, de paredes pegajosas, em que nos perdemos sem retorno. Numa tristeza profunda pelas perdas irreversíveis, a avançar para o futuro a andar de costas. Com os olhos, encovados do cansaço, exaustos de olhar, em relutante recusa do abandono do passado.



Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que p'las aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-me esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

O meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

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