terça-feira, dezembro 28, 2010

 

O GATO ASDRÚBAL FAZ 4 MESES

E eu achei que era um óptimo pretexto para começar a fazer balanços.

Este que termina foi o pior ano da minha vida. Apesar da minha tendência para o dramatismo e para a hiperbolização das emoções (no fundo não passo de uma actriz frustrada), foi mesmo. Pela dor que senti. E a diferença, em relação aos outros anos em também vivi momentos de dor - no corpo ou na alma - foi a constância da dor vivida em 2010. No sentido de ter sido omnipresente. Em todos os seus cambiantes, mas sempre cá. Vivi dor surda, dor lancinante, dor latejante, dor incapacitante, daquela que enregela e congela, dor que entorpece e não se sente nada, dor que queima tudo porque é bombeada como se o sangue se transformasse em azeite a ferver, dor que faz soltar urros, que nos faz enrolar numa bola para diminuir a superfície exposta, dor que se mascara num sorriso sem olhos, dor dor dor. Quanta dor!...

E por causa de toda essa dor, cresci. Aprendi tantas coisas, descobri-me alguns recantos escondidos. Pedaços de mim congelados há séculos, prontos a serem reconhecidos e aceites. Outros, a gangrenar, de extirpação urgente. Dispus-me a tudo isso. Entreguei-me ao inevitável. Diziam-me que sem pensar em nada nem em ninguém. Não é verdade. Pensava. Pensava sempre. A cada instante. Mas não era possível fazê-lo de outro modo. Deixei que a gangrena se espalhasse. Cortei a sangue-frio, sem dó nem piedade, sem hesitações, cada pedaço putrefacto de mim. Talhante inexperiente, não soube aplicar o corte fino e preciso para nem um grama de pedaços saudáveis fossem agarrados à carne podre. E assim alguns se perderam, na voragem da limpeza.

Apareci-me e aos outros, inconsequente, leviana, cobarde, falsa, ingrata, mal-formada, uma valente filha-da-puta. E fui tudo isso, sim. Finalmente pude olhar para a minha sombra e encarar quem também sou, por detrás da mulher maravilhosa que encanta todos. E ao aceitar-me assim inteira, lua cheia e lua nova, pude fazer as pazes comigo e exercer a valente prerrogativa da verdadeira escolha de quem sou. E acreditar que o que há em mim é uma mulher encantadora que tem uma sombra cheia de podres que já não lhe metem medo.

Reforcei relações com pessoas que não param de me surpreender e que me acolheram nos seus corações, de uma forma que sei para toda a vida. Num caso específico, aprendi que "o essencial é (mesmo) invisível aos olhos" e que, por trás de alguém aparentemente básico, pode haver uma inteligência brilhante e viva e uma capacidade de atenção e dedicação aos outros única. Confirmei que os laços de sangue não determinam quem é a nossa família e pude comprovar que tenho mais uma irmã que é um furacão, capaz de, por mim, virar o mundo de pernas para o ar. Assisti ao verdadeiro amor abnegado que não espera nada em troca. Senti que, do outro lado do oceano, me pegaram ao colo e me ninaram como um bebé. Vi medo nos olhos de quem gosta de mim. Não fosse eu perder o caminho de volta. Também senti algumas faltas. Estranhei algumas ausências. Prefiro pensar que há pessoas que não são capazes de segurar a dor dos outros porque isso as aproxima demasiado das próprias dores. E como "quem não se sente não é filho de boa gente", eu sinto-me. Mas não fico ressentida.

Talvez a melhor bagagem que possa levar para o próximo ano seja a consciência de que nada é para sempre. Não no sentido em que costumava pensar. Posso ter algo ou alguém na minha vida até ao fim. Mas a ideia do "para sempre" é perigosa. Porque deixa-nos enredados na armadilha de que já sabemos tudo, de que estamos preparados para qualquer eventualidade, que sabemos como fazer face a qualquer tremor de terra que nos assole. Eu não sabia. Eu não sei. A única coisa que mudou é que, agora, sei que não sei. E se, por um lado, isso faz um medo do caraças, por outro, abre todas as possibilidades de vida.

segunda-feira, dezembro 27, 2010

 

O SENTIDO DO MESTRE

Questiono-me inúmeras vezes sobre o sentido da vida. Nada de especial nem diferente do que se passa com a maioria das pessoas com quem me dou. O meu mestre, que me ensinou quase tudo o que sei fazer na minha actividade profissional de eleição, convencia-me que é uma busca que um dia termina. Que, de repente e sem receitas, um dia tudo encaixa e faz sentido e, supostamente, atingimos um estado, se não da felicidade que fantasiamos, pelo menos (menos?) de uma serenidade imune às turbulências da vida mundana. Tenho quase a certeza de que morreu sem atingir esse estado. Sem saber porque cá andava, para onde a vida o levava. Ou talvez, mesmo no fim, tivésse chegado lá... Por ele mas, sobretudo, egoisticamente, por mim, quero acreditar que assim aconteceu. Porque quero continuar à procura de algo que mantenho a fé de encontrar. De outra forma, a própria busca perde o sentido. E também não quero encarar a possibilidade de que seja, precisamente na busca, que se consubstancie o sentido. Isso faria de nós meros corredores de uma maratona infindável, sem a possibilidade sequer de gerir sprints e endurances, por não nos ser dado conhecer o quanto dista a meta.

quinta-feira, dezembro 23, 2010

 

NATAL A ESTREAR

Ando há dias a rodear a questão. Mais como o predador que fareja a presa e se esmera na estratégia de ataque do que como quem quer ver se passa ao lado sem ver nem ser visto.

É que, façamos o que fizermos, nesta altura do ano acontece Natal.

E, em mim, Natal sempre foi festa, família feliz, muita gente na cozinha a achar que mandava bitaites mas sob as ordens da mãe-general que arranjava sempre maneira de corrigir alguma coisa que fizéssemos, nem que fosse apenas dar mais uma volta à massa dos sonhos.

Vivi Natais em Angola, na época pós independência, em que íamos para a bicha das lojas sem sequer sabermos "o que estava a sair", como se dizia. Lembro-me dos meus irmãos numa noite de 24, agarrados cada um à garrafa de Sbell (o uísque mais rasca que podem imaginar), que era o que afinal havia nas prateleiras da loja do povo, como se fossem troféus, olhos brilhantes de alegria, puro gozo e felicidade. Eles que nem bebiam...

Vivi um Natal de pobres. Espoliados de tudo o que tivemos de deixar do outro lado do mar. Mas tão felizes... Com uma árvore cortada pelo pai num mato qualquer e dezenas de bolinhas coloridas, de tamanho mínimo que eu comprava a 10 centavos cada, na drogaria do bairro J. Pimenta.

A certa altura, comecei a viver Natais de perdas. Cada ano, ao guardar os enfeites, pensava "quem não vai estar cá no próximo ano?" Foi nessa altura que chamei a mim o papel da mãe-general e passei a considerar uma desfeita que o Natal não fosse passado em minha casa. E programava tudo com um entusiasmo infindável. Nada era sentido como trabalho a mais. Nada podia ser comprado. Tudo tinha de ser feito em casa, como a tradição mandava. Sempre a minha sobranceria perante os "coitados" que se contentam com o que vão comprar às pastelarias. Começava um mês antes. Os queques de Natal. Vários. Muitos, às vezes. Para casa, para oferecer à tia L., para a F., para os sogros, para a empregada, para a comadre, para mandar para Angola por DHL... como se só eu os soubesse fazer, como se nem houvesse Natal para os outros se, às suas mesas, não estivesse o meu bolo.

A árvore tinha de ser montada no 1.º domingo do advento. As 4 velas acesas em cada domingo respectivo. O presépio que a mãe gostava, em lugar de destaque.

A mesa da consoada, com a toalha de gerações, de linho imaculadamente branco, posta com todo o esmero. Os candelabros. Os copos e os talheres a reflectirem-lhes a luz.

O momento da chegada do rebanho. Sempre em número equilibrado porque a partida de alguns lá se ia compensando com a chegada de outros. A confusão instalada de novo. A animação do jantar. O perú que se come à mistura com o bacalhau por causa da L.

O tempo que não passa até à meia-noite. A excitação dos adultos que não estão crescidos e vestem a fatiota encarnada de todos os anos. A fita-cola que nunca presta para colar a barba de algodão. Os presentes puxados em lençóis de rojo pelo chão. Os gritos de euforia. Os beijos, os abraços, papéis por todo o lado. Amor por todo o lado.

Este ano vai ser tudo diferente. A pessoa nova que sou já não quer saber fazer os melhores sonhos nem o melhor recheio do perú. Não sei como se faz. A que morreu levou tudo consigo. Esta, recém-nascida, está fascinada com o mundo que se movimenta à sua volta. Como o bebé que descobre as mãos e se ri de as ver mexer.

É por isso que este, que poderia ter tudo para ser o pior Natal da minha vida, vai ser, ao invés, o primeiro de todos.

terça-feira, dezembro 21, 2010

 

ESTRELAS NA NOSSA VIDA

Venho desenvolvendo a convicção de que toda a gente que nos cerca, numa proximidade considerável, não está connosco por acaso. E vice-versa, naturalmente. Isto não tem nada que ver com teorias das reencarnações e de quem nós escolhemos vir a ser e ao pé de quem. Disso não me apetece falar hoje. É a uma perspectiva bastante mais pragmática que me refiro.

Tenho observado que há pessoas que relacionamos com momentos cruciais da nossa vida, sobretudo pelo protagonismo que assumem no desenvolvimentos dos factos e/ou pela intensidade com que se fizeram presentes. Podem ser apenas catalisadoras de um qualquer tsunami na nossa vida e depois desaparecerem, ou permanecerem por mais tempo, às vezes até para sempre. Mas com um estatuto diferente do que, em outra hora, tiveram. Como gosto de dar a tudo um certo ar de coisa mística, vou chamar-lhes companheiros-guia.

O mais encantador é que há um perfeito matching que é feito (algures no Céu?), porque a reciprocidade de efeitos é absoluta e os companheiros-guia são-no sempre um do outro. Se eu precisar de viver uma determinada situação que envolva mudança (dolorosa ou não), todo o sentido que encontrar nessa vivência terá um congénere, um equivalente, por mais díspar que seja ou, ainda, em aparência, mutuamente exclusivo, num sentido que o meu companheiro-guia encontrará, pela partilha da minha situação. Ainda que pareça tudo vivido por interposta pessoa.

Não há, portanto, porque nos sentirmos em dívida em relação a essas pessoas. O ganho é mútuo. E só não o reconhece quem tem má índole ou é muito pobre de espírito. Pela mesma razão, é quase um dever de consciência, pelo menos uma assumpção de total responsabilidade da nossa parte, gozar de tudo o que cada um dos nossos companheiros-guia, tem para permutar connosco.

O que acontece é que estamos demasiadas vezes tão embrenhados na riqueza do nosso interior, tão enlevados com a importância que nos damos que desperdiçamos oportunidades únicas de crescer em serenidade.

segunda-feira, dezembro 20, 2010

 

O MOMENTO

Durante uma conversa tida há pouco, escutei-me, de repente, em afirmação de uma atitude professa, tão distante do que sempre fui que quase me admirei. Enquanto falava (e o assunto surgiu no meio de nada muito sério) dei por mim a endireitar o corpo - barriga para dentro, peito para fora - cara sisuda, olhos esbugalhados de ataque de sobranceria. E saíram-me palavras que não sabia minhas. Aprendi a viver apenas o agora. O que vivi no passado tornou-me quem sou. Agora. Posso fazer o que quiser com isso mas no agora. Se não estiver aqui e agora, como posso projectar-me no futuro com a densidade que (não) possuo, sem enveredar por quimeras e meros devaneios, ilusões de quem não é? Não significa que não faça planos, que não alimente sonhos. Mas não vivo como se já lá estivesse. Num futuro que pode ser já de seguida mas que ainda não aconteceu.

Não é verdade que não existe o presente, como me ensinaram quando era pequena, pedindo-me para pestanejar e perceber a diferença entre o passado e o futuro. E o nada de entremeio. Esse nada é onde tudo acontece. Viver o momento-agora, é um verdadeiro segredo para a fruição total da vida, para o gozo pleno de estar vivo.

A nossa língua, de tão rica em rodriguinhos e volteios permite-nos, por vezes, perder o verdadeiro sentido das palavras, a essência de cada acção. Fiquei a pensar que os limitados e redutores "to be" ou "être" são, neste particular, muito mais expressivos. Podemos nós ser sem estar?

quinta-feira, dezembro 16, 2010

 

O PACTO

Vivi, desde sempre, num pacto com a morte. Ofereci-me à foice, anulando toda e qualquer capacidade para discernir a minha existência. Inchei até ocupar um espaço físico indecente, sem me aperceber que era uma tentativa de me tornar real. Nunca me vi. Por isso os outros repetiam até à sua própria exasperação o quanto eu sou uma mulher maravilhosa, fascinante, bonita, auto-suficiente, prendada até em lavores e domesticidades, capaz de deitar mãos a qualquer tipo de tarefa e executá-la na perfeição. Profissional de sucesso, admirada, respeitada. Capaz de deixar partidos corações de homens e mulheres deslumbrados com a forma como me mexo, com a sensualidade que me brota dos poros. Adorada pela família. Imprescindível para os amigos. Entusiasta e entusiasmante. Apaixonada. Inteligente. Perspicaz. Intuitiva.

E tudo isso escorregava no tecido viscoso da mortalha que enverguei. Lamento mas nunca me serviu de nada tudo o quanto me diziam. Desistam de estranhar que eu não veja, que eu não acredite. Parem de mo repetir. É quase ofensivo. Já não controlo o meu desdém por quem precisa de ouvir dos outros a confirmação de ser quem devia saber que é. São elegias. Não servem de nada aos mortos. Só acalmam a consciência dos vivos e servem, na maioria das vezes, a quem as faz e a quem as recebe, fins muito concretos mas muito pouco elevados.

Hoje alguma coisa mudou em mim. Não há nada que nos leve mais rapida e profundamente ao auto-confronto que o sofrimento. E, apesar de todas as perdas que já vivi, precisamente por estar, também eu, perdida e morta, nunca sofri tanto como nos últimos meses. E foi essa a via, como escrevi há dias, que me conduziu ao corpo. E, confrontada com ele, apercebi-me da vida que pulsa em mim.

Hoje, despi a mortalha. Ainda iniciada, como uma vestal, apenas envergo uma simples túnica branca. Para que possa vir a ser da cor que eu quiser. De todas as cores que eu quiser. Vou poder escolher de entre a paleta que sei que tenho, de entre tudo o que sei que sou. E vou poder divertir-me a viver todo o espectro da mulher inteira, versátil e fascinante que me habita. Quando e como me apetecer.

Porque, hoje, eu fiz um Pacto com a Vida.

terça-feira, dezembro 14, 2010

 

A FORÇA

Há dias enchi o peito, toda ufana, para falar da esperança que tenho num determinado futuro que desejo. Quem me ouvia, fez um ar de profundo enfado, acompanhado de um som que, fora na minha terra e seria um muxoxo, e disse-me, compungida com a patente acefalia do meu ser: "esperança??? isso é uma porcaria!". Sustive (a tempo de não deixar a minha imagem ainda mais denegrida) todo o resto da prelecção que levava preparada e, o mais airosamente que pude, transformei os meus olhos de espanto num redondo ponto de interrogação. "Porcaria??? A Esperança, aquilo que nos mantém vivos ainda que num presente negro? Que nos dá alento para levantar da cama, tomar banho, enfrentar o trânsito, embrutecer em empregos sempre iguais que sonhamos um dia diferentes? Que motiva quarentonas solitárias a irem ao cabeleireiro, fazerem unhas de gel e a passarem na Zara, no mínimo uma vez por semana, para se manterem a par das modas, não vá aparecer-lhes quem lhes limpe o pó e lhes tire as teias de aranha? Que nos faz acreditar que os homens vão aprender a ser diferentes e que, por isso, a Terra continuará azul em 2125? Porcaria???".

Sim. Porcaria. Aquilo que se chama ao que não serve para nada e que tem como destino o lixo. Porque a esperança (o que me custa ainda dizer isto...) mais não é, na verdade, do que uma muito bem arquitectada falácia construída sobre sinais que queremos seguros mas que, muitas vezes, não passam de projecções dos nossos desejos, que vemos serem aleatoriamente emitidos pelos outros ou, até, pelo universo. Em resumo... porcaria! Porque nos mantém dependentes dos estímulos externos, das luzinhas ao fundo dos túneis, da procura febril (quantas vezes a raiar a ilegalidade) de indícios que nos mantenham em pé.

A minha interlocutora sorriu. E, com aquele arzinho de mãe doce que costuma usar comigo, disse-me: "Já a fé...". A FÉ! Essa coisa que não se sabe onde mora dentro de nós porque parece ocupar todo o espaço e ainda transbordar pele fora. "Aquilo que nos toca incondicionalmente". Aquilo que não precisa de provas, nem de indícios, nem de sinais. Que é força que é só nossa e não tem razões. Que nos leva a sermos capazes de nos transcendermos sem limites. A sermos heróis da nossa história pessoal. A lutar até que se nos rasgue a pele e nos caiam as unhas porque o que nos enche o peito é uma vontade indómita que nada fará vergar.

Dizem que o amor é a maior força que existe. Não é. A fé é muito maior. Porque é a fé que nos move em direcção ao verdadeiro amor. No matter what.

 

MORPHINA'S NONSENSE

Não te quero en(ti)mesmada, ouviste? Nem tão pouco me vou en(mi)mesmar... Deixa que se en(si)mesmem à vontade!...

(ainda estou a rir-me)

quinta-feira, dezembro 09, 2010

 

PERDOAI-LHES SENHOR?

Cresci a ouvir (sempre a minha mãe!...) que "desculpa não cura ferida". O estribilho popular diz que "as desculpas não se pedem, evitam-se". Talvez por isso, aprendi a pedir desculpa apenas socialmente, quando o que está em causa é uma falta de correcção, como não segurar uma porta para quem entra atrás de mim, ou sujar uma toalha imaculada ao servir-me. Nas outras situações, tento ser o mais assertiva possível e explicar porque não tive o comportamento esperado. No entanto, a culpa sempre foi presente. É engraçado o paradoxo de ter sido quem me ensinou que as desculpas não servem para nada que mostrou todas as variantes da culpa que podemos - e deveríamos - sentir. E, de cada vez que me insurgia contra esse peso, ainda que sem consciência nenhuma disso, logo aparecia uma categoria nova, mais uma entrada no cardápio das culpas, em permanente actualização.

A remissão, por não ser possível pelas desculpas, deveria advir-nos do perdão. Esse sim. Deveria ser pedido, implorado se necessário, vividas as penas inerentes, por mais duras que fossem, para que o conseguíssemos. Mas pior, pleonasmicamente imperdoável, era não sermos capazes de o conceder.

Hoje nada disto me faz sentido. Aprendi que o perdão mais não é do que um upgrade snob e arrogante, aparentemente mais sofisticado, da desculpa.

Eu não quero conceder perdões. Essa hipótese coloca-me numa posição de supremacia que ninguém pode ter em relação a outro. Quem sou eu para o fazer? De que poder fui investida? Para mim, só pode haver um caminho. Se alguém me fez tão mal que me deixou profundamente magoada só posso tomar uma de duas atitudes: ou deixa de ser pessoa e, não o sendo, não é possível despertar-me qualquer sentimento, ou encontro em mim o espaço de total compreensão e aceito a dor causada como algo que não foi possível evitar, que fez parte do caminho daquela pessoa e que terá, com toda a certeza, um sentido. E o melhor que posso fazer, é aproveitar a experiência para me tornar um bocadinho mais tolerante e um bocadinho mais perto de ser melhor.

Tenho esperança, não... é mesmo fé, que quem me ama possa ter a compaixão (no sentido anglófono da palavra) de me tratar da mesma forma.

terça-feira, dezembro 07, 2010

 

O CORPO

Durante 40 anos adoeci. Ou melhor: o meu corpo adoeceu. Vivi na carne todo o tipo de dores e foram-me desferidos todo o tipo de golpes. Fui invadida por instrumentos, por mãos estranhas, instilaram-me gases e extirparam-me órgãos. Tenho na pele as marcas das costuras que ligam os retalhos em que me fui tornando.

Um dia, inesperadamente mas - descobri depois - com absoluta sincronicidade, alguém mo apresentou: "este é o seu corpo". Foi assim que me tornei, num segundo de tempo, consciente da sua existência. Do espaço que ocupara e do quanto me tinha servido sem que eu o (re)conhecesse. E, como que fulminada, percebi que alguma coisa não estava bem.

Hoje, após 9 cirurgias e quase 3 anos de psicoterapia, de corpo saudável, finalmente deprimi. E toda a energia que anteriormente irrompia através da carne, se organizou numa onda de violência descomunal que avançou, inexoravelmente, sobre mim, deixando-me totalmente submersa numa mistura de água e sal que, entrando-me pelas narinas ávidas, me sufocou. E morri.

E renasci. No meu corpo retalhado mas completo. Pleno de energia e saúde. Sem espaço para aceitar metabolizar o que não lhe pertence. Exigente e caprichoso, em demanda de uma psique igualmente sã.

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