domingo, abril 15, 2012

 

SALAMANDRA

Descobri há pouco que o maior desafio desta minha vida consiste em aprender a lidar com a perda. Descobrir não será bem o termo… Já o sabia há muito tempo. Mas, por antever a dor envolvida no processo, ando a “encanar a perna à rã”, iludida, ainda, de poderes houdinianos para escapar ao óbvio.

Há dias, durante uma crise daquelas de que sou agora acometida, catalépticas, esgotantes de catárticas, incontroláveis, passou-me a vida à frente dos olhos. Como descrevem os que veem a morte num instante. Imagens de perda, de dor e sofrimento e de mais dor e de mais perda. Num rewind até aos 7 anos. E de construção de diques e tabiques e represas que me contiveram e protegeram da total diluição num oceano de mágoa.

Condescendentes com a entrada de pequenas bolsas de ar, sorvidas sofregamente, as cósmicas mãos à volta do meu pescoço, logo de seguida se galvanizavam em titânico aperto.

E foram arrancados de mim pedaços de carne e músculo, liquefiz-me em sangue e fluidos. Literalmente falando.

Foi assim que perdi um útero. A três dias de completar 20 anos. Durante muito tempo, quando passava num certo sítio, ali para os lados do Príncipe Real, costumava dizer, com mal-disfarçada amargura: foi para aqui que veio viver o meu útero quando se autonomizou de mim.

Na realidade, nunca aceitei aquela separação. Fiz de conta que nada se havia passado, não chorei, “como louca até sorri”…

Mais de 20 anos depois, sem aviso prévio, num workshop de um polémico autor, de uma teoria ainda mais polémica que ele e de quem, portanto, ouviremos falar, a meio de um exercício sinto no baixo-ventre um pulsar, um latejar tão forte que, de tão intenso, se tornou doloroso. E dei comigo a gritar, sem pudor nem contenção, que tenho um útero, que ninguém me tira o que não quero que me seja tirado. Foi avassalador. Fiquei a sentir-me toda-poderosa. Salamandra humana que faz crescer, em criação espontânea, as partes de que foi amputada. Num poder total sobre as vicissitudes, sobre o destino cruel traçado a bisturi.

Lembrei-me, depois, que quase levantei um processo ao Hospital de S. José por negligência quando, há três anos, no relatório de um TAC abdominal, veio descrito um útero, com dimensões, formato e até inclinação!... Só o meu médico de confiança me impediu a acção porque, em perplexidade total, também ele via, naquelas chapas negras, a massa estranha, de matéria indefinida que, ali bem estampada, não se deixava encontrar quando procurada por mãos experientes. Descartada a hipótese de troca de identidades, não fora o exame pertencer a uma completa mulher, preferi remeter o assunto para o limbo das ocorrências inexplicáveis/a esquecer…

Mas nada acontece por acaso. Era o que faltava!... dou demasiada importância à vida para achar que nos limitamos a desempenhar um papel mais ou menos principal, mais ou menos secundário, na encenação de um argumento. A vida é uma peça viva. Cheia de improvisos e brancas de memória. E sem pontos. A cada momento podemos alterar a história. E o herói pode acabar como nós quisermos.

Descobri, então, que carrego em mim um espectro. O fantasma do órgão que foi meu. Que deixei guardado o espaço que foi seu. Que o preenchi com aquela “coisa nenhuma” que é tão diferente do nada. Como um fantasma, não é palpável mas é visível, em presença de adequado instrumento.

E percebi que o poder com que fiz contacto naquele dia - o de materializar o inexistente – era o mesmo que me permitiria encaminhar a alma penada do órgão excisado. Entrega-lo a Deus. Entre o esplendor da luz perpétua, descanse em paz. E olhar, com o adequado instrumento, para o espaço vazio. Va-zi-o. Perdida a coisa. Largada. Encaminhada a sua alma. Va-zi-o. Sem espectro, sem fantasma. Nada. Perda vivida. Assunto arrumado.



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