segunda-feira, outubro 09, 2006

 

INEDAMÚDE

Sempre ouvi a minha mãe dizer que a vida dela havia começado quando completou 40 anos. Sendo que me chamava "a estrela da minha vida", depreendi que tivesse sido o meu nascimento, duma forma simbólica (ou até literal), a provocar-lhe a sensação de início de vida. Na verdade, o que eu achava na altura era o que me parecia mais simpático, o que sintonizava com a incondicionalidade do lugar ocupado por mim na vida daquela mãe-gigante. Mas isso era só porque eu estava pouco atenta. Porque, agora, quando me lembro do que ela, de facto, dizia, tenho de reconhecer que só uma ínfima parte se referia à "estrelinha". Era da MULHER que falava. Não da mãe, não da esposa, não da amiga nem da filha nem da caridosa vicentina e activista católica. Era mesmo da fêmea, em toda a sua pujança. Se calhar foi por isso que eu nasci. Daí a ligação. Permitiu-se engravidar e parir-me em todo o esplendor dos seus 40 anos cheios de tesão. E ganhou uma dimensão muito superior à comportada pelo seu corpo físico. Quem se lembra dos gestos daquelas mãos enormes, do jeito voluntarioso que dava à cabeça enquanto falava, dos passos decididos com que andava e que tão bem combinava com o doce requebrar genético, sabe do que falo. Não sei como é que ela era antes dos 40 anos. Para mim, sempre tão sôfrega, tão ciosa, possessiva, obcecada por ela, nem existia. Nasceu no mesmo dia que eu. Talvez um pouco antes para me preparar a chegada. Para se preparar para a chegada. Dela. Da fabulosa mulher de 40 anos.

Estou quase lá. Pela primeira vez na vida desejo que o tempo passe, ainda que sempre o faça, indiferente ao nosso desejo. Inexoravelmente. E nunca me senti tão plena, tão segura de mim. Piso o chão com um gosto que não se explica. Sei que emito luz. Agora sim, sou uma estrela. A minha.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?



eXTReMe Tracker