quarta-feira, outubro 05, 2011

 

A BESTA (de novo)

Há mais ou menos 18 anos, estive deprimida verdadeiramente pela primeira vez. Refiro-me ao conceito clínico e não apenas àquela melancolia, tristeza, desalento que todos sentimos, em maior ou menor grau, mais ou menos vezes ao longo da vida, com uma curiosa e particular incidência aos domingos ao fim da tarde.

Disse querer morrer. Fiz uma patética tentativa, de cariz essencialmente apelativo, ao jeito do cobardolas que, desafiado a andar à pancada, enquanto dá uns seguros passos atrás, berra: “agarrem-me, agarrem-me que lhe parto os dentes todos”…

Agarraram-me. Fizeram tudo direitinho - eu também - e a “coisa” passou no seu devido tempo. As perdas que se (me) sucederam, as mortes com que tive de lidar depois disso, obrigaram a um congelamento da minha estrutura, a um segurar tudo “cá dentro”, para não desmoronar.

E a vida correu. Durante os primeiros anos que se seguiram, tinha pavor de voltar a deprimir. Mais ainda do que de ficar diabética. Que é coisa que me deixa estarrecida. Era só o que me faltava!… Deixar de poder recorrer à minha droga de eleição.

Aos poucos, fui esquecendo como me sentira, fui-me tornando mais feliz, fui acreditando que, afinal, a vida apenas dera uma fífia, que o episódio não passara de uma partícula de pó no caminho da agulha sobre um disco de vinil.

E fui feliz. Descontraidamente feliz. Despreocupadamente feliz. Tranquila e serenamente feliz… E doente. Muito doente no corpo. Mas de alma iluminada.

De repente (“Não mais que de repente”), sem que nada o fizesse supor ou suspeitar, nem a mim nem a ninguém, quase que apenas num instante, num ínfimo lapso de tempo, a temida voltou. E veio com tudo. Com a força da besta que esteve, anos a fio, retirada do mundo, num qualquer recôndito lugar, a urdir estratégias, a treinar golpes, a desenvolver músculo e cérebro com o objectivo único de se lançar a mim. Sedenta de desforra e triunfo.

Colou-se-me à pele, transformou-se na carne que me reveste os ossos, tomou-me de assalto o coração e deglutiu todo o meu conteúdo cefálico. Trouxe consigo doses de terror com que me injecta regularmente. Alimenta-me de angústia e mágoa e leva-me a passear a labirínticas florestas onde me solta a trela para que me sinta perdida.

Tem uma ajudante. Uma espécie de partenaire do ilusionista do circo. É sedutora, no seu sorriso tranquilo e doce. Aparece-me de braços abertos e convida-me, com o olhar, a aceitar o colo que me oferece: “Anda, acolhe-te aqui. Verás como tudo passa. Já chega… Para que continuas a penar? Anda… Levar-te-ei a ver maravilhas, a um mundo encantado. Lá, serás feliz…”.

Ah! Que vontade de me deixar ir… Mesmo que a esmola seja grande e eu, pobre, desconfie. Como recusar a promessa de uma vida nova, num maravilhoso (admirável?) mundo novo? Aqui já está tudo gasto: já vivi alegrias, dores, paixões, angústias, nadas, tudo em graus exponenciais e que chegam para toda uma vida. Vivi. Vivi! Nunca nada me passou ao lado, desde que ao alcance do meu braço. Sou demasiado preguiçosa e descrente para me mexer. Mas vejo-me em pose estática, com os meus longos braços em movimento contínuo, quais tentáculos de polvo agarrando tudo o que me passava perto. E a saber tirar todo o proveito. Mesmo quando o ganho fosse dor.

E a besta, atenta, sempre à coca, ataca! Apanha-me cansada, exaurida deste meu destino/missão que escolhi de me dar aos outros e… ataca! Deixa-me siderada. Trucidada. Os braços/tentáculos escorridos ao longo do corpo. A deixar passar, tão perto que lhes sinto o hálito, todos os meus recursos.

Às vezes não me resta senão o olhar. E, num esforço que só eu sei, foco-o no que quero, apelo para o que me resta de esperança de alguma oferta da vida. Nessas alturas, a partenaire de voz maviosa aparece, o sorriso cada vez mais doce, o colo cada vez mais amplo. Desfoco a sua imagem. Vejo para além, por detrás. Aí está a realidade que quero. Sei que pudesse eu levantar um braço e não me escaparia. Mas como? Inerte este corpo, desintegrado, devorada a vontade, curto-circuitadas as sinapses deste meu cérebro de lama?

Alguém que me pegue ao colo, por favor. E me ajude a jogar este jogo de ganhar vidas. Se for exímio e treinado na arte, talvez possa dar bom uso às duas armas que me restam: ainda tenho o olhar e o sorriso.

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