sexta-feira, janeiro 14, 2011

 

O PROVATÓRIO

Quando era pequena, a minha mãe ajoelhava-se todas as noites junto à minha cabeceira, do lado esquerdo, para rezarmos. Eu adorava aquele ritual: naquele momento a mãe era só minha, bebia-lhe o cheiro, sentia-lhe o hálito quente, os dedos longos e esguios a afagarem-me os cabelos. Durante muito tempo esse era o meu momento alto do dia. Ela ia dizendo os nomes das pessoas por quem pedíamos e eu repetia: "Pelo pai". "Pelo pai". "Pela professora Novita". "Pela professora Novita". Terminávamos sempre a pedir "pelos meus inimigos", que era algo que me fazia sentir qualquer coisa entre um anjo e uma santa. Pelo meio, havia um pedido que lembro-me de ter carecido de explicação, não sei ao fim de quantas repetições. Presumo que não muitas porque, passe a imodéstia, não era fácil porem-me a dizer coisas que não sabia o que significavam. Pedíamos "pelas almas do purgatório". Disseram-me que eram aquelas almas das pessoas que morriam e que não estavam nem no Inferno nem no Céu. Porque não tinham sido tão más que merecessem o fogo eterno mas também não tinham sido tão boas que tivessem ganho entrada directa no Céu. Algumas haveria, ainda, que só tinham cometido um ou outro pecadilho menor e que bastariam umas quantas orações de meninos puros e bem-comportados para ganharem o passe almejado. Ciente da importância que eu poderia ter na forma como as pobres das almas viveriam para sempre (que é mesmo infinito quando se tem 4 ou 5 anos), empenhava-me no fervor com que repetia essa parte da oração da noite.

Depois, ficava a pensar nos que nunca conseguiriam sair dali. O Inferno era um sítio tão mau que nem me atrevia a pensar nele, a não ser quando me descuidava e fazia alguma coisa passível de me enviar directa para lá. E ficava cheia de medo, pedia muito perdão e jurava tornar-me uma menina melhor, quanto mais não fosse para ir para o purgatório e ainda ter alguma chance de salvação. Mas e os que não teriam nunca? Como seria a vida naquele sítio? Só há poucos anos aprendi que o Limbo ainda é outro local porque, para mim, era tudo a mesma coisa: um terreno de "pendurados". De almas semi-penadas, à deriva, à mercê das orações que, na terra, os homens fizessem, ou ao cumprimento de uma pena indeterminada, sem datas para entrevistas de avaliação com um júri que determinasse a habilitação para a subida. E haveria o risco da descida? Seria que, no purgatório, se poderia cometer algum deslize que não só atrasasse o processo de purga mas, pior, levasse à emissão imediata de um salvo-conduto para o Inferno?

Ainda hoje, independentemente do que é para a Igreja Católica, para mim o purgatório é o pior dos lugares. Só consigo imaginar um lugar a branco e cinzento, nem preto sequer, com gente a deambular, de expressões vazias, de braços inúteis caídos ao longo do corpo mas cabeças erguidas em sinal de prontidão para aceitação dos desígnios. Totalmente ignorantes quanto ao seu destino final, cientes apenas da sua limitada capacidade de intervenção, sem regras nem normas nem sequer memorandos que estabeleçam o que pode ser considerado "um bom comportamento" que alivie a pena 2 séculos ou um "mau comportamento" que, inadvertidamente tido, os deixe para sempre (com a conotação que tinha aos 4 ou 5 anos) à espera.

E que sentido tem esse local? Para que serve, afinal? Pergunto-me eu, adulta. "É um local para se meter a mão na consciência" ouço a minha mãe sussurrar-me ao ouvido. E o que é isso, mãe? O que é meter a mão na consciência? "É percebermos que errámos. Que fizemos alguma coisa que não estava certa". Que pecámos? "Sim. Tudo o que fazemos que não está certo, sobretudo aos outros, pode ser visto como um pecado". Então, o purgatório é uma pena que se cumpre, mãe? "Podes vê-lo assim. É a tua oportunidade de te redimires. De assumires a tua culpa e de esperares, com humildade e espírito de abnegação que o tempo da remissão chegue. E se o fizeres com fé e convicção, talvez algumas orações que meninos puros e bem-comportados façam com as suas mães à noite, à cabeceira da cama, possam contribuir para te aliviar a espera".

Comments:
simbolicamente, para mim que tenho a fé que tenho e que pouco percebo de religião, o purgatório está ao nível do processo terapêutico.
penoso, mas bem trabalhado dá-nos a possibilidade de alcançar o céu. de ver a luz.
(entretanto, agora veio-me à ideia um post.)
 
sim. pode ser uma boa metáfora para o processo terapêutico. no entanto, ainda assim, esse é um purgatório em que, em maior ou menor grau, em função das resistências e dos insights, não estamos à deriva. para além do mais, temos um guia. que nos orienta nas zonas escuras. e porque faz o caminho connosco, alimenta o acreditar que a remissão é possível, porque somos dois a apostar nisso e envolvidos com todo o empenhamento.
 
era mais como exemplo do local antes de chegar ao céu.
respondi sem atentar muito no que é o purgatório. mas pela imagem que me apareceu de forma espontânea.
(não estamos à deriva... podemos não estar, mas às vezes fico com a sensação que ando às cegas!)
 
e às vezes anda-se mesmo. e faz parte ;)

beijinho
 
A culpa, essa raínha que decide quais os desejos que devemos matar.
A culpa, aquela que nos deixa desconfortáveis e em conflito, quando o que nos dá prazer colide com o modelo de "bom comportamento" que nos foi transmitido, mas que também nunca nos fêz sentido.
A culpa, aquela que nos esfregam na cara e que nos faz ter a certeza de não sermos merecedores de nada de "bom".
Aligeirando um pouco, no meu imaginário, quando este tipo de tema de conversa vem à tona, para ser franca, costumo e continuo a dizer que sei que não me daria bem no purgatório, acabaria sempre por me portar mal e ir parar inevitavelmente ao inferno. Mal por mal, sinto que é no inferno que encontrarei outros como eu.
Por isso, apesar de toda a atenção e respeito que os outros merecem, tento ser sempre capaz de não admitir que as minhas decisões sejam determinadas pela culpa.
Por isso, como se adivinha, o meu destino é certo!
 
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