domingo, agosto 25, 2013

 

PARRICÍDIO (por interposta pessoa)

Só tive os meus pais em permanência até aos 12 anos. Desde aí, passei a ser uma filha em intermitência. Nos intervalos, arranjava pais substitutos que, de uma forma ou de outra, iam preenchendo os vazios. Tenho, por isso, um bom stock parental, arrecadados que foram sendo os pais das minhas amigas e namoradas. Sou, de todos eles, uma filha adorada, ainda que mais ou menos distante, consoante a idade em que me tiveram a cargo.

A vida encarrega-se de intrometer espaços e tempos nas relações. E separações. Algumas radicais, com nota de definitivas. Sempre que isto me ocorreu, aqueles "pais" escolheram manter incólumes os laços, muitas vezes em oposição activa aos desejos das filhas. A estes pais que escolhi, dei muito mais do que aos que me conceberam. Sem o peso da obrigação, pude dar largas à minha generosidade no gesto e no afecto. Caprichosa recebi, em directa proporção, mimos e atenções. Sei que consigo fazer com que qualquer pessoa se sinta única e especial. Não é nada que finja. Quando acontece, é o milagre da entrega que se dá. Talvez seja esse o segredo da manutenção de toda esta parentalidade de que me socorro.

Quando, com 11 anos, tomaram a decisão de me enviarem para longe, para a segurança de um país em paz, exigi (sempre caprichosa) não ficar em casa de nenhum familiar, escolhendo deixar-me internar num colégio de freiras. Expus claramente as minhas razões. Quis ser apenas mais uma entre algumas dezenas de iguais. Não suportaria viver enjeitada, refém das sobras dos filhos dos pais da casa. A sobrinha ou a prima. A parente de pais distantes. Que teria de saber ocupar um espaço secundário na filiação.

Com a morte dos meus pais intensificou-se este sentimento de orfandade. E as adopções que fiz, a partir de então, tornaram-se ainda mais plenas. Da vivência do que foi um casamento tomei, como meus, os pais que me foram oferecidos, descuidando cautelas.

Há dores que não se dizem. Só se falam. Linhas de texto em caixas de diálogo. Racionalmente inteligível. Para lá disso, só o sentir. A perda dos pais é dor dessa. E mesmo quando passámos a maior parte da vida a treinar substituições, há um dia - depois da dor - em que percebemos que os pais que temos são, antes de mais, pais de outro(s). Que, com toda a legitimidade - e antes da dor - os reclamam como prioritariamente seus.

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