domingo, agosto 25, 2013

 

PARRICÍDIO (por interposta pessoa)

Só tive os meus pais em permanência até aos 12 anos. Desde aí, passei a ser uma filha em intermitência. Nos intervalos, arranjava pais substitutos que, de uma forma ou de outra, iam preenchendo os vazios. Tenho, por isso, um bom stock parental, arrecadados que foram sendo os pais das minhas amigas e namoradas. Sou, de todos eles, uma filha adorada, ainda que mais ou menos distante, consoante a idade em que me tiveram a cargo.

A vida encarrega-se de intrometer espaços e tempos nas relações. E separações. Algumas radicais, com nota de definitivas. Sempre que isto me ocorreu, aqueles "pais" escolheram manter incólumes os laços, muitas vezes em oposição activa aos desejos das filhas. A estes pais que escolhi, dei muito mais do que aos que me conceberam. Sem o peso da obrigação, pude dar largas à minha generosidade no gesto e no afecto. Caprichosa recebi, em directa proporção, mimos e atenções. Sei que consigo fazer com que qualquer pessoa se sinta única e especial. Não é nada que finja. Quando acontece, é o milagre da entrega que se dá. Talvez seja esse o segredo da manutenção de toda esta parentalidade de que me socorro.

Quando, com 11 anos, tomaram a decisão de me enviarem para longe, para a segurança de um país em paz, exigi (sempre caprichosa) não ficar em casa de nenhum familiar, escolhendo deixar-me internar num colégio de freiras. Expus claramente as minhas razões. Quis ser apenas mais uma entre algumas dezenas de iguais. Não suportaria viver enjeitada, refém das sobras dos filhos dos pais da casa. A sobrinha ou a prima. A parente de pais distantes. Que teria de saber ocupar um espaço secundário na filiação.

Com a morte dos meus pais intensificou-se este sentimento de orfandade. E as adopções que fiz, a partir de então, tornaram-se ainda mais plenas. Da vivência do que foi um casamento tomei, como meus, os pais que me foram oferecidos, descuidando cautelas.

Há dores que não se dizem. Só se falam. Linhas de texto em caixas de diálogo. Racionalmente inteligível. Para lá disso, só o sentir. A perda dos pais é dor dessa. E mesmo quando passámos a maior parte da vida a treinar substituições, há um dia - depois da dor - em que percebemos que os pais que temos são, antes de mais, pais de outro(s). Que, com toda a legitimidade - e antes da dor - os reclamam como prioritariamente seus.

sexta-feira, junho 14, 2013

 

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA

O meu maior defeito é a rigidez. Custou-me a entendê-lo. A aceitar-me assim. Passo primeiro para a mudança. Via como contraponto e argumento a desfavor, a imensa tolerância que imprimo à forma como vivo. A minha vida e a dos outros. Manipuladora como poucos, entendia-me flexível, maleável, capaz de serpentear à volta de fins que me movam. Que engano!... Até o meu corpo o mostra. Toda eu sou requebros. Mexo os quadris como se tivessem vontade própria e não pertencessem a uma estrutura. Mexo os ombros como se o resto do corpo não fosse enervado. Dir-se-ía que sou elástica, capaz de controlar cada parte do todo. E assim é, com efeito. Ao primeiro acorde de um ritmo especifico que me acorda os genes. Rigidamente. Dêem-me uma melodia de outras coordenadas e não passo do embalo mediano de quem tem o gosto mas a quem falta a arte.

Os que comigo privam dir-me-ão adaptável. Finjo. Como o poeta. Só me ajusto por fora. Cá dentro, uma fraga de granito transmontano que não se altera um milímetro. Por erosão, seriam precisos séculos, eras. Sou afável, simpática, atenta, disponível, generosa. O sorriso é franco, aberto. As mãos, expressivas e ágeis. Os braços, estendidos sempre prontos para a acção. Empedernida nesse estar! Porque me custa tanto experimentar outro? Basta a ideia e fico ofegante, com as mãos húmidas e trémulas. De onde me vem este medo de me desintegrar? Eu que tanto gosto de aventuras, do novo, de ir aos limites, porque não brinco a este faz-de-conta? É como se houvesse outra de mim. Verifico que é "ela" quem me apavora. Receio perder o sorriso, a desenvoltura que cativa, a entrega disponível. E se eu não gostar do "mim" que aparecer? E se, uma vez dinamitada a rocha, ficar soterrada em escombros? Ferida em lascas de pedra? Não me interessam os outros. "Finjo tão completamente" que ninguém daria por nada. Já não dão. Só eu conheço a resistência do meu menir interno.

Sempre temi a idade. A degradação física deprime-me, angustia-me. Percebo agora que é tudo parte do mesmo. É como se passasse a ter um mau serviço de caracterização. Amarela-se o sorriso, engelham-se as mãos, artriterizam-se os movimentos, embaça-se o olhar.

Escasseia-se-me o tempo. Se - ainda - quero ser feliz, está na altura de ganhar coragem. De, em movimento inverso ao do poeta, desfazer o castelo e deixar as pedras no caminho.

domingo, maio 26, 2013

 

DE QUEM É O AMOR

Gosto de gatos. Distintamente dos cães, cuja inteligência é apenas operativa e para pouco mais serve do que fazê-los obedecer a "deita", "dá a pata" e "apanha a bola", os gatos têm aquela metaconsciência que anda a par com a sabedoria.

A Cookie foi minha durante 13 anos. Era-me verdadeiramente devotada. Assim que estacionava o carro, quando ainda não era nova-rica e não tinha garagem, mesmo que demorasse 10 minutos a entrar em casa, a Cookie saltava de onde estivesse a dormir (meditar?) e corria a sentar-se à porta para me receber. Não voltava a largar-me senão à despedida, no mesmo local, habitualmente na manhã seguinte.

Por mim, suportava a presença do Podgy, o cãozinho que, de quando em vez, passava férias lá em casa. Estudei para os exames do 12º ano deitada na cama com os dois, um de cada lado dos meus pés, ignorando-se mútua e enfaticamente, com a mesma intensidade com que me olhavam.

Durante os nossos 13 anos de convivência, devo ter-lhe cortado as unhas 2 ou 3 vezes, dado banho outras tantas, mudado o caixote e enchido o prato talvez numa dezena de ocasiões.

A Maria Emília, minha mãe, apesar da ligeira oposição inicial ao elemento novo, assegurou sempre todos os cuidados à bicha, com o desvelo que imprima a tudo o que fazia. Cozinhava-lhe postinhas de pescada a que retirava as espinhas para lhe dar de miminho, aparava-lhe cuidadosamente as unhas para não atingir o sabugo, dava-lhe banho (embora fosse absolutamente desnecessário) só para retirar o pêlo velho, não fosse a gatinha ingeri-lo.

A Cookie nunca dormiu com a minha mãe. Não se sentava ao colo dela. Tratava-a, ostensivamente, como se nem existisse. Essa displicência evidenciava o teor meramente funcional da relação. Em inversa proporção ao amor cego que me dedicava. Em voz vexada, a Maria Emília repetia: "Eu é que trato dela mas é da outra que ela gosta!".

Lembrei-me disto em reflexão sobre o Amor. Se a Cookie amasse a tratadora seria legítimo, facilmente perceptível a razão. Mas o Amor é impermeável a qualquer lógica. A hermenêutica do Amor é, para o limite humano, terreno invicto.

O Amor que tem uma causa, que deriva de algo é, por inerência, um amor limitado. A esta origem. O Amor "do nada", que existe por si só, que não decorre de uma relação de cuidado, que nasce inclusivamente na sua ausência, é o Amor. Que se alimenta de subtis e imperceptíveis trocas, apenas inteligíveis para os actores do processo. Como a imensa sensação de conforto de que (estou certa) éramos ambas acometidas quando, a cada noite, a minha gata se encaixava na dobra das minhas pernas.

Levei estes anos todos. Mas finalmente percebi que não tenho de fazer nada. Que o Amor surge de geração espontânea. E aceitar isso é saborear a Paz.

quinta-feira, abril 25, 2013

 

AGORA É SEMPRE O PONTO DE PARTIDA

Dizem-me dos sonhos com que cresceram. Falam-me de vidas em construção. Do passo a passo que visa um objectivo. Alcançar uma meta. Programar um propósito.

Não os entendo. Não sei querer ser. Nunca pensei nisso. Cresci como que por natureza. Nunca escolhi, nunca planeei. Vivi com toda a intensidade (com desmesurada intensidade mais vezes que o confortável) cada dia, cada etapa, cada fase, cada idade. Desconheço a ambição, o acalentar de um sonho, o traçar de um percurso - recto ou sinuoso - para ir dar a algum lugar, a qualquer coisa.

Sou profissionalmente feliz, realizada ao minuto, na prática do que foi evidente. Não há bifurcações no meu caminho. Placas que me guiassem. Tenho, debaixo dos pés, pequenas turbinas propulsoras que me levam. Quanto disso é desresponsabilidade? Quanto disso é apenas viver?

Sento-me na beira deste degrau, que ainda não sei se sobe ou desce, que me leva aos 45 anos e, cá dentro, funciona tudo como sempre. De olhos arregalados, ouvidos muito à escuta, mala pronta, encanto-me com o livro aberto, em branco, que tenho à frente. Não paro. Não seria meu, fazê-lo. Não seria eu, sê-lo. A surpresa é o ar que me oxigena o sangue, que me leva a vida a todo o corpo. De futuro não sei nada. Só conjugo o presente. Este que, em movimento, me conduz ao destino que tenho.

Trago a herança dos fortes, dos destemidos, a arrogância de quem tudo pode porque nada é demasiado. Deste degrau que se move - tapete voador ou vassoura de bruxa - estendo os braços e sacudo as mãos. Conjuro a magia de transformar os dedos em pequeninos leds que iluminam o espaço que ocupo. Fica tudo branco. Tudo em branco. O zero mais que absoluto. O nada (diferente de coisa nenhuma) prestes a preencher.

E, como nunca, ouço a voz do meu pai que nem aos 90 anos perdeu a firmeza e o desassombro: "hoje é o primeiro dia do resto da minha vida".

domingo, abril 15, 2012

 

SALAMANDRA

Descobri há pouco que o maior desafio desta minha vida consiste em aprender a lidar com a perda. Descobrir não será bem o termo… Já o sabia há muito tempo. Mas, por antever a dor envolvida no processo, ando a “encanar a perna à rã”, iludida, ainda, de poderes houdinianos para escapar ao óbvio.

Há dias, durante uma crise daquelas de que sou agora acometida, catalépticas, esgotantes de catárticas, incontroláveis, passou-me a vida à frente dos olhos. Como descrevem os que veem a morte num instante. Imagens de perda, de dor e sofrimento e de mais dor e de mais perda. Num rewind até aos 7 anos. E de construção de diques e tabiques e represas que me contiveram e protegeram da total diluição num oceano de mágoa.

Condescendentes com a entrada de pequenas bolsas de ar, sorvidas sofregamente, as cósmicas mãos à volta do meu pescoço, logo de seguida se galvanizavam em titânico aperto.

E foram arrancados de mim pedaços de carne e músculo, liquefiz-me em sangue e fluidos. Literalmente falando.

Foi assim que perdi um útero. A três dias de completar 20 anos. Durante muito tempo, quando passava num certo sítio, ali para os lados do Príncipe Real, costumava dizer, com mal-disfarçada amargura: foi para aqui que veio viver o meu útero quando se autonomizou de mim.

Na realidade, nunca aceitei aquela separação. Fiz de conta que nada se havia passado, não chorei, “como louca até sorri”…

Mais de 20 anos depois, sem aviso prévio, num workshop de um polémico autor, de uma teoria ainda mais polémica que ele e de quem, portanto, ouviremos falar, a meio de um exercício sinto no baixo-ventre um pulsar, um latejar tão forte que, de tão intenso, se tornou doloroso. E dei comigo a gritar, sem pudor nem contenção, que tenho um útero, que ninguém me tira o que não quero que me seja tirado. Foi avassalador. Fiquei a sentir-me toda-poderosa. Salamandra humana que faz crescer, em criação espontânea, as partes de que foi amputada. Num poder total sobre as vicissitudes, sobre o destino cruel traçado a bisturi.

Lembrei-me, depois, que quase levantei um processo ao Hospital de S. José por negligência quando, há três anos, no relatório de um TAC abdominal, veio descrito um útero, com dimensões, formato e até inclinação!... Só o meu médico de confiança me impediu a acção porque, em perplexidade total, também ele via, naquelas chapas negras, a massa estranha, de matéria indefinida que, ali bem estampada, não se deixava encontrar quando procurada por mãos experientes. Descartada a hipótese de troca de identidades, não fora o exame pertencer a uma completa mulher, preferi remeter o assunto para o limbo das ocorrências inexplicáveis/a esquecer…

Mas nada acontece por acaso. Era o que faltava!... dou demasiada importância à vida para achar que nos limitamos a desempenhar um papel mais ou menos principal, mais ou menos secundário, na encenação de um argumento. A vida é uma peça viva. Cheia de improvisos e brancas de memória. E sem pontos. A cada momento podemos alterar a história. E o herói pode acabar como nós quisermos.

Descobri, então, que carrego em mim um espectro. O fantasma do órgão que foi meu. Que deixei guardado o espaço que foi seu. Que o preenchi com aquela “coisa nenhuma” que é tão diferente do nada. Como um fantasma, não é palpável mas é visível, em presença de adequado instrumento.

E percebi que o poder com que fiz contacto naquele dia - o de materializar o inexistente – era o mesmo que me permitiria encaminhar a alma penada do órgão excisado. Entrega-lo a Deus. Entre o esplendor da luz perpétua, descanse em paz. E olhar, com o adequado instrumento, para o espaço vazio. Va-zi-o. Perdida a coisa. Largada. Encaminhada a sua alma. Va-zi-o. Sem espectro, sem fantasma. Nada. Perda vivida. Assunto arrumado.



domingo, fevereiro 19, 2012

 

EU TE PERDOO, MARIA

A dor penetrante que sentia há meses, junto ao ombro esquerdo, um dedo acima da clavícula, desapareceu.

"Descreve a dor, Maria". "É uma faca espetada?" ... "É uma agulha?" ... "Sente e diz." ... E o dedo a tocar na ferida, a provocar agonia. Ali, exactamente. Como se houvesse um botão a ser accionado.

"É um prego! Um enorme prego que me trespassa." E a epifania em flash, na voz de um anjo que me guarda: "Não te crucifiques, Maria." E o milagre a acontecer. O prego arrancado, o soltar-me da cruz.

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

 

SINAIS DOS TRANSITOS (ou como se prova que uma má mãe é melhor que mãe nenhuma)

O meu gato é doente mental. Comunicou-mo o veterinário com um olhar pesaroso e empático: "Acontece quando são retirados cedo demais das mães e são criados por humanos". Caramba! Até os bichos estragamos...

Salvei-o de morte certa, promovida por mão caridosa que o faria mergulhar num fundo balde de água. Durante um mês, acordei de 4 em 4 horas para lhe dar o biberão. Durante 2 meses não o larguei, sem me importar com o quanto pareceria excêntrico andar com uma casa de plástico colada a mim, fosse para onde fosse. Pedia nos restaurantes que aquecessem a água (mineral, claro) que juntava ao leite em pó especial (caríssimo...), para não falhar nenhuma mamada que aquela bola de pêlo sorvia, sôfrego. Sobrava espaço na minha mão, quando o envolvia e o encostava ao peito... Vai agora o ingrato sofrer do síndroma do-não-sei-quê... Por lhe ter faltado mãe!!!

Desde há alguns dias que encontro, todas as manhãs, caído no chão, um texto preso a um pequeno pedaço de serapilheira que me foi dado por uma cliente e que tenho pendurado num dos quinhentos balangandãs que espalho pela casa. Todas essas manhãs baixei-me, resmunguei com o gato e voltei a colocar o pedacinho áspero de tecido no lugar. Confesso que não me lembrava, de todo , o que lá estava escrito.

Hoje fiquei um tudo nada mais irritada quando, mais uma vez, encontrei o texto no chão, a interpor-se entre mim e o café que tomo ainda a dormir. Quase quase dei uma sapatada ao meu doente mental, farta das possessões de que é acometido noite adentro e que o levam a atirar-se contra as paredes, fazendo jus à loucura diagnosticada.

Talvez tenha sido a irritação mais acentuada ou a sensação desagradável de tremor interno com que acordei. O certo é que, no meio da obnubilação do sono, mesmo antes do café, achei que tinha de ler, afinal, o texto em que andava a tropeçar. E era isto:

Grey’s Anatomy
Episode 22
“Unaccompanied Minor”

Meredith:

There is a reason I said I’d be happy alone.
It wasn’t because I thought
I would be happy alone.
It was because I thought
If I loved someone
And then it fell apart, I might not make it.
It’s easier to be alone.
Because what if you learn that you need love?
And then you don’t have it.
What if you like it?
And lean on it?
What if you shape your life around it?
And then it falls apart?
Can you even survive that kind of pain?
Losing love is like organ damage.
It’s like dying.
The only difference is death ends.
This?
It could go on forever.

quinta-feira, dezembro 29, 2011

 

RELATÓRIO E CONTAS

Nunca fiz planos para o Ano Novo, nunca tomei daquelas resoluções de mudança a colocar em prática impreterivelmente na manhã de 1 de Janeiro. Sou mais do tipo balanços. Se calhar, porque sou uma insegura e temo tanto o futuro que prefiro agarrar-me ao que já cá canta, seja bom ou mau.

No dia 1 de Janeiro de 2011, fui a Fátima. Entreguei à Mãe o meu ano novinho em folha. Pedi-lhe que mo gerisse por estar tão incapaz que roçava a inimputabilidade. Assim, dispus-me a ter apenas o usufruto dos 365 dias que se seguiriam e em que nem queria pensar, por serem tantos. Eu, que ainda há tão pouco, tentara ceifá-los e acabar com qualquer alvorada que sobreviesse. Quanto mais 365!...

Mas, afinal, cheguei aqui. À distancia de apenas 2x1 dia que é, como quem diz, só mais hoje e amanhã. A contar como contava os dias que faltavam para a data da festa. “No tempo em que festejavam os meus anos (…) e ninguém estava morto”.

Mal me reconheço na pessoa que viveu os primeiros meses deste ano. Leio coisas que não me lembro de ter escrito, embora seja a minha letra – ainda que mais feia e desordenada – que encontro em pequenos apontamentos feitos aqui e ali que, hoje, me apanham de surpresa, ao abrir o caderno da escola ou o livrinho das notas que tomo na supervisão ou, ainda, aquele caderninho que tenho na mesa-de-cabeceira e que foi um presente de um presente do céu.

Quando me perguntam como estou agora, respondo, invariavelmente e desde há cerca de dois meses, que “Andei perdida, fui ao fundo mesmo fundo mas já estou quase eu. Ainda não totalmente mas quase”. Esta frase tem-me soado estranha. Há qualquer coisa no seu conteúdo que não ressoa cá dentro. Como se estivesse a ser dita por outra pessoa ou como se eu estivesse a falar para alguém e não com alguém (como me ensinou o meu saudoso Mestre) quando a formulo.

Pensei que fosse por não me identificar com o nacional espírito fatalista (embora cada vez goste mais de fado e seja a única música que consigo ouvir quando estou triste, provavelmente para sintonizar com o afecto sentido). Aquela coisa de não dizer que estamos bem, sim senhor. Não vá dar azar… Ou alguém com um olho muito gordo invejar-nos o sorriso e a luz que desatámos a emanar.

Quando se pensa em alguma coisa, de forma empenhada e honesto desejo de tomar consciência, tornamo-nos clarividentes. A justificação que parecia tão lógica, não me satisfez. Do contra, como sei que sou, não me revejo no estar lusitano, nesta coisa que, por certo, remonta a um passado glorioso que tivemos e que, por má sorte ou olhado, perdemos, até nos confinarmos a ser pouco mais do que a praia da Europa.

Portanto, o meu titubear, a minha falta de vontade de afirmar-me completamente bem, teria de ter outra origem, outro significado. Como sempre, veio de repente: Claro!... Há aqui uma incongruência que reitero na minha insistência no ainda. Digo: “Ainda não estou totalmente eu”. Ainda não estou eu porque não sou aquele eu!

Morri. Verdadeiramente. Em dada altura. Não numa data específica mas por uma série de dias a fio. Uma morte lenta, agonizante, extremamente dolorosa. Vivi as chamadas “melhoras da morte” para, logo de seguida, sucumbir definitivamente. Sufoquei em pranto, em nós cegos atados ao estômago, soçobrei exangue, entreguei-me à foice. Morri e matei. Fui semeando dor à minha volta. Queimei tudo em que toquei. Cerquei-me de aridez.

Apaguei-me do mundo. Deixei de existir. Não quis saber de nada nem de ninguém. Era peso demais para o meu corpo de morta-viva. Fui. Lá, no limbo em que me acolheram, deixei-me ficar. Entreguei-me sem esperança, sem dor, sem paz, sem nada. Toda eu uma coisa nenhuma. Depois, quando chegou o momento, reencarnei. “Na vida que escolhi”.

Este “eu” já sou um eu. Sou alguém que perdeu a visão romântica do ser humano sem, contudo, ter perdido a fé nas pessoas. Sou ponderada, paciente, contida. Sem, contudo, ter perdido a alegria, o entusiasmo, a espontaneidade. Sei viver cada dia como se a vida toda dependesse apenas disso, sem me preocupar com o quanto o amanhã é condicionado pelo que faço hoje. Sei que, agora, é tudo o que tenho. E que a minha obrigação é vivê-lo. Aprendi a dizer “não” e, com isso, a dizer verdadeiramente “sim”. Permito-me o prazer de nada fazer e a ninguém agradar a não ser a mim, se para isso estiver virada. Ou o oposto, completamente. Reencarnei livre. E, acredito, capaz de assumir toda a responsabilidade que a liberdade total acarreta. Com medo. Que é sentimento humano e necessário. Mas com coragem. E desprendimento. E desapego.

Nada é meu. Nada é certo. Nada é para sempre. Somente eu. Que, afinal, já sou.

quinta-feira, novembro 24, 2011

 

FURA QUÊ?

Dois dos meus piores defeitos são absolutamente antagónicos. Tenho tanto de racional (posso ser tão argumentativa que, se estiver para aí virada, dou "nó até em gota de água") como de emocional (a típica movida a coração, fúria, ausência de bom-senso).

Por ser assim, a maioria das atitudes que tomo não são verdadeiras decisões, pensadas e conscientes. Porque resultam da teimosia ou do impulso. Nunca de reflexão ponderada e madura. Ok... tenho melhorado um pouco, à custa de alguma dor, algum trabalho e tempo e, sobretudo, de muito dinheiro. Que a minha psi é óptima mas faz-se pagar muito bem!...

Nesta dinâmica, sem que percebesse porquê, acordei um dia destes convicta de que iria aderir à greve de hoje. Toda a gente sabe que não percebo nada de política, ignorância que já me causou vergonha mas que, agora, apenas ganha corpo num (fútil?) encolher de ombros. Toda a gente sabe, também, que apesar disso, sou um pouco mais do que simpatizante do PP, que me agrada o capitalismo e que só tenho pena de não poder viver como fascista à séria por não ter dinheiro para isso.

Normalmente, não me questiono nem me preocupa perceber as minhas incongruências. Geminiana pura, estou habituada aos múltiplos que me habitam em coexistência nada pacífica. Ser do FCP e do SLB (conjugação que há quem diga impossível) explica muita coisa.

No entanto, talvez porque alguém de quem gosto muito (querida Sista) me chamou "camarada do PP", desta vez a nota assintónica feriu-me os neurónios que pertencem ao pedaço encefálico que raramente uso e que serve para dar sentido ao que me interessa explicar. E, quando assim é, ou percebo ou... inquieto-me num desassossego que farta.

A minha sorte é a velocidade das sinapses (que Deus estava generoso quando chegou a altura de mas conceder) e a luz costuma vir em flash. Ontem, precisamente ao picar do ponto à saída do trabalho, o que parecia incoerente, apareceu-me organizado, lógico, racional e, mais importante que tudo, assente nos meus mais preciosos valores e princípios: é verdade que defendo o capital, que acho que não merecemos todos o mesmo se não produzimos o mesmo, que a democracia não é conceito operacionalmente viável porque há gente burra e cretina e não podemos ter todos o mesmo peso nas decisões que afectam todos.

Mas é também verdade que não nascemos todos com as mesmas oportunidades. Que há gente fadada com o infortúnio e a quem não podemos, levianamente, atribuir o rótulo de párias da sociedade. Tenhamos nós, os que nasceram "com o rabo virado para a lua", alguma decência na cara.

As cadeias estão cheias apenas de pobres (de carteira e de espírito, é certo), de gente que nasceu e cresceu em sub-mundos que a maioria de nós só sabe que existem porque é informada e tem uma (mórbida?) curiosidade por vidas excêntricas.

Ao meu lado, todos os dias, trabalham pessoas que, no dia de hoje, se sentem envergonhadas. No seu íntimo, sabem que talvez de nada valesse fazerem greve, que "estas coisas" nunca levam a nada. Independentemente disso, gostariam de ter a liberdade para decidirem fazê-la ou não. Com maior ou menor engajamento político.

Mas não a têm. Simplesmente porque a perda do vencimento de um dia é determinante na economia familiar. É um luxo a que não podem dar-se. E a liberdade não é um luxo, não é um bem supérfluo, não é um acessório. É um direito fundamental. Sabê-la coarctada faz revolver as entranhas de PP-simpatizante.

É por isso que hoje estou de greve. Estou zangada com a forma como governam o meu país mas, disso, eu não percebo nada. Nem sei, na verdade, que efeitos esta greve pode produzir. O que sei é que posso escolher não trabalhar hoje. Eu posso decidir manifestar o meu descontentamento. Eu posso prescindir do vencimento de um dia de trabalho. No limite, aumenta o delay da decisão de comprar impulsivamente (mais) um anel. Apenas.

Eu hoje estou de greve pela liberdade perdida.

domingo, novembro 20, 2011

 

O INFINITO EM PÉ

Hoje faz anos o mEiA vOlTa e... Visita privilegiada daquele espaço, de entre as certezas que tenho na vida a de que serei sempre calorosamente recebida naquela casa é, sem dúvida, uma delas.

Posso afirmar que a aNa já fez bem a muita gente. Durante anos, acompanhei, de muito perto, a forma como ela se dá à interacção, o valor que atribui à riqueza que lhe advém dos contactos que suscita, das reflexões que estimula.

Digo, com toda a segurança, que a aNa mudou vidas. Não só a minha. Sei que haveria, pelo menos, meia dúzia de pessoas pronta a confirmar o que digo e a afirmá-lo na primeira pessoa. E quando falo em mudar, estou mesmo a referir-me a alterações profundas e não a meros ajustamentos.

O segredo tem um nome: autenticidade.

Por isso a aNa tanto é doce como arisca. Ora se desvela, ora se resguarda. Como ela diz, não é com meia volta que se fica a conhecê-la. Nem com a volta toda... Porque as voltas são sempre diferentes. Imprevisíveis. Espontâneas. Função de humores, estados, momentos. À imagem e semelhança de quem as dá. No entanto, qualquer um de nós que a lê, sabe que o que está lá... é! Só assim sei definir.

E é por isso que, apesar do mau feitio, de se outorgar o direito de não permitir em sua casa levianas contradições, ilegítimas investidas no seu mundo, dá tanta segurança a quem dela se aproxima.

E, acreditem, embora prime pela selectividade nas suas relações pessoais, não é difícil vê-la de braços abertos para acolher quem a procura. Atrevo-me a dizer que a única condição é ser-se tão honesto e transparente quanto ela. E, isso sim, não é para qualquer um.

Obrigada aNa!

quarta-feira, outubro 05, 2011

 

A BESTA (de novo)

Há mais ou menos 18 anos, estive deprimida verdadeiramente pela primeira vez. Refiro-me ao conceito clínico e não apenas àquela melancolia, tristeza, desalento que todos sentimos, em maior ou menor grau, mais ou menos vezes ao longo da vida, com uma curiosa e particular incidência aos domingos ao fim da tarde.

Disse querer morrer. Fiz uma patética tentativa, de cariz essencialmente apelativo, ao jeito do cobardolas que, desafiado a andar à pancada, enquanto dá uns seguros passos atrás, berra: “agarrem-me, agarrem-me que lhe parto os dentes todos”…

Agarraram-me. Fizeram tudo direitinho - eu também - e a “coisa” passou no seu devido tempo. As perdas que se (me) sucederam, as mortes com que tive de lidar depois disso, obrigaram a um congelamento da minha estrutura, a um segurar tudo “cá dentro”, para não desmoronar.

E a vida correu. Durante os primeiros anos que se seguiram, tinha pavor de voltar a deprimir. Mais ainda do que de ficar diabética. Que é coisa que me deixa estarrecida. Era só o que me faltava!… Deixar de poder recorrer à minha droga de eleição.

Aos poucos, fui esquecendo como me sentira, fui-me tornando mais feliz, fui acreditando que, afinal, a vida apenas dera uma fífia, que o episódio não passara de uma partícula de pó no caminho da agulha sobre um disco de vinil.

E fui feliz. Descontraidamente feliz. Despreocupadamente feliz. Tranquila e serenamente feliz… E doente. Muito doente no corpo. Mas de alma iluminada.

De repente (“Não mais que de repente”), sem que nada o fizesse supor ou suspeitar, nem a mim nem a ninguém, quase que apenas num instante, num ínfimo lapso de tempo, a temida voltou. E veio com tudo. Com a força da besta que esteve, anos a fio, retirada do mundo, num qualquer recôndito lugar, a urdir estratégias, a treinar golpes, a desenvolver músculo e cérebro com o objectivo único de se lançar a mim. Sedenta de desforra e triunfo.

Colou-se-me à pele, transformou-se na carne que me reveste os ossos, tomou-me de assalto o coração e deglutiu todo o meu conteúdo cefálico. Trouxe consigo doses de terror com que me injecta regularmente. Alimenta-me de angústia e mágoa e leva-me a passear a labirínticas florestas onde me solta a trela para que me sinta perdida.

Tem uma ajudante. Uma espécie de partenaire do ilusionista do circo. É sedutora, no seu sorriso tranquilo e doce. Aparece-me de braços abertos e convida-me, com o olhar, a aceitar o colo que me oferece: “Anda, acolhe-te aqui. Verás como tudo passa. Já chega… Para que continuas a penar? Anda… Levar-te-ei a ver maravilhas, a um mundo encantado. Lá, serás feliz…”.

Ah! Que vontade de me deixar ir… Mesmo que a esmola seja grande e eu, pobre, desconfie. Como recusar a promessa de uma vida nova, num maravilhoso (admirável?) mundo novo? Aqui já está tudo gasto: já vivi alegrias, dores, paixões, angústias, nadas, tudo em graus exponenciais e que chegam para toda uma vida. Vivi. Vivi! Nunca nada me passou ao lado, desde que ao alcance do meu braço. Sou demasiado preguiçosa e descrente para me mexer. Mas vejo-me em pose estática, com os meus longos braços em movimento contínuo, quais tentáculos de polvo agarrando tudo o que me passava perto. E a saber tirar todo o proveito. Mesmo quando o ganho fosse dor.

E a besta, atenta, sempre à coca, ataca! Apanha-me cansada, exaurida deste meu destino/missão que escolhi de me dar aos outros e… ataca! Deixa-me siderada. Trucidada. Os braços/tentáculos escorridos ao longo do corpo. A deixar passar, tão perto que lhes sinto o hálito, todos os meus recursos.

Às vezes não me resta senão o olhar. E, num esforço que só eu sei, foco-o no que quero, apelo para o que me resta de esperança de alguma oferta da vida. Nessas alturas, a partenaire de voz maviosa aparece, o sorriso cada vez mais doce, o colo cada vez mais amplo. Desfoco a sua imagem. Vejo para além, por detrás. Aí está a realidade que quero. Sei que pudesse eu levantar um braço e não me escaparia. Mas como? Inerte este corpo, desintegrado, devorada a vontade, curto-circuitadas as sinapses deste meu cérebro de lama?

Alguém que me pegue ao colo, por favor. E me ajude a jogar este jogo de ganhar vidas. Se for exímio e treinado na arte, talvez possa dar bom uso às duas armas que me restam: ainda tenho o olhar e o sorriso.

segunda-feira, setembro 19, 2011

 

ONOMATOPEIA?

Catrapuz!...

sábado, setembro 10, 2011

 

REVISÕES DA MATÉRIA DADA

Recurso. Etimologicamente, o acto de desfazer caminho, a possibilidade de fazer um caminho novo, re+cursus. Diz-me o Priberam que a palavra designa um meio para alcançar um fim, um remédio, uma cura, um refúgio, uma protecção e que a conjugação do verbo corresponde ao acto de procurar ajuda ou socorro.

Fico a pensar... Como é habitual nesta nossa complicada e riquíssima língua, chego à conclusão de que estou perante um daqueles conceitos ambíguos, uma faca de dois gumes, um terreno pouco seguro, não propriamente escorregadio, antes acidentado. Porque formulo duas frases. De significado contrário e antagónico. E as duas são verdadeiras ou, pelo menos, a observação dos homens e a vida vivida, disso me convencem: "qualquer pessoa gostaria de ser considerada um recurso" e "ninguém gosta de ser considerado um recurso".

"Conta incondicionalmente comigo". "Podes recorrer a mim sempre que precisares". "Não te esqueças de quem gosta de ti". "Não hesites em procurar-me".

"Eu não sou um pneu sobresselente". "Só se lembra de mim quando precisa". "Tarde piaste". "Cada um faz a cama em que se deita".

Reflicto nisto e, como sempre, fico maravilhada perante a riqueza da natureza humana. Efectivamente, "o Homem é ele próprio e a circunstância". E as diferentes experiências, os outros que interagem connosco, a nossa própria (inadmitida?) incoerência, tornam-nos capazes da expressão da antítese na vida que somos.

Fico inquieta. Profissionalmente eu sou, por excelência, um recurso. Esforço-me por ser de qualidade. Empenho-me, entrego-me, estudo para que, o recurso que sou, tenha o valor que é esperado. Mas não estou imune à minha substância humana. Onde está o momento em que, legitimamente, posso começar a assobiar para o lado? Se não me pagarem? Se não me respeitarem? Se não souberem aproveitar-me enquanto recurso... e dos bons?

E no resto da minha vida? Quando é que aquela linha finíssima - que separa a disponibilidade, a tolerância e o amor ao próximo, da ausência de amor-próprio e auto-estima - aparece, ainda que apenas pontilhada? Nesse momento que direito tenho, enquanto responsável por este ser que sou eu, o único com quem viverei para o resto da vida, como dizia o Oscar Wilde, de assobiar para o lado mas de mim? O que se torna "um recurso" nesse instante?

Volto atrás nestes enleios em que me distraio, para perceber que "recurso" pressupõe "relação". Já devias saber! Tudo pressupõe relação. Pelo menos na tua vida, senhora! E que, por esse motivo, é com o outro que eu sou um recurso (ou que ele é um recurso para mim). E isso basta para que tudo se legitime, para que tenha o direito de ser incondicionalmente disponível ou incondicionalmente indisponível. Na mesma hora, no mesmo instante. Assim difiram as circunstâncias. Até porque, como me ensinou o mestre (que saudades): "Quem não se sente não é filho de boa gente".

quarta-feira, setembro 07, 2011

 

A FÉ. SEMPRE A FÉ.

Cresci na igreja. Literalmente. A minha mãe, vicentina caridosa, dedicado membro da Acção Católica, senhora da alta burguesia da terra, aos sábados, acompanhada da sua dilecta amiga, senhora de uma burguesia ainda mais alta, limpava o pó aos altares da Sé Catedral e compunha arranjos de flores que fariam a comunidade soltar heréticos murmúrios de admiração durante as eucaristias de domingo, face à clara demonstração de humilde entrega cristã.

Eu acompanhava-as sempre. E tinha um altar próprio, só meu, de que cuidava. À entrada da igreja (edifício moderníssimo, imponente, construído no início dos anos 70, controverso e, para sempre, inacabado), à esquerda, a pia baptismal era encimada por um Cristo na cruz, figura dum realismo que dissonava de forma chocante com o minimalismo estilizado do edifício. Talvez por me sentir atraída por esse contraste grosseiro, deleitava-me a limpar, com um paninho e uma escova de dentes usada, cada chaga do corpo daquele desgraçado. Enquanto o fazia, acho que rezava. Mas já nem sei bem. Talvez o fizesse da forma mais pura que pode haver, porque imbuída de uma verdadeira compaixão. Ao passar os dedos por cada ferida aberta, sentia a dor vivida e condoía-me. Havia qualquer coisa de masoquista no acto (“todo o sadismo é masoquismo”, diz-me a mestre), um prazer associado à dor. Uma conexão que o meu cérebro instintiva e automaticamente ainda hoje faz entre sofrimento e gozo… (“sofrer para bela ser”; “no pain, no gain”).

Fui à missa mais do que uma vez por semana durante anos. Conhecia a liturgia quase de cor. Era dos leitores mais requisitados por ter uma voz bonita, clara e ser tão novinha que ficava bem no púlpito. Uma promessa… Ouvi histórias dos “chamados”. Aqueles que o Pai escolhia para integrarem o seu rebanho, para serem as suas ovelhas de ouro. Pedi-lhe sinais para o caminho. E ele deu-mos. Tornando-me tão devassa e voraz pela vida que me mostrou, inequivocamente, a impossibilidade de me confinar a um convento ou mesmo a uma leve entrega leiga à “causa”.

Aos poucos, perdi a necessidade de “lá” ir tantas vezes. Hoje, quando vou à missa, é de visita a casa de um amigo a cujo convite respondo. E como o que ele me serve. E só não bebo porque não há maneira dos homens que mandam na igreja, perceberem que o que faz sentido é o pão com o vinho (comungar das duas espécies, como me ensinou a mãe).

E sei as senhas e as contra-senhas todas. Respondo ao papaguear próprio, ao argumento decorado. Sei as falas e entro nos tempos certos. Algumas saem-me da boca. Outras, do coração. Há, no entanto, uma frase que resume e define o que é, para mim, a fé. É dita aquando do convite para a mesa e funciona como uma afirmação de que acredito, de que, de verdade, existe algo que me toca incondicionalmente.

Aprendi agora – que tenho ido tão poucas vezes às suas festas – que posso repeti-la sempre que me apetecer, como se faz quando se envia um sms a um amigo só para se dizer o quanto se gosta dele ou falarmos das saudades que sentimos. E, quando o faço, sinto, em toda a plenitude, o efeito destas palavras em mim: “Senhor, eu não sou digna de que entreis em minha morada. Mas dizei uma palavra e eu serei salva”.


segunda-feira, fevereiro 14, 2011

 

COISAS DE BRUXAS?

Ontem falaram-me do "caldeirão". Exactamente o que eu precisava para poder concluir a metamorfose. Et voilá!...

terça-feira, fevereiro 08, 2011

 

REMINDERS

"ÓRBITA CEMITÉRIO" - Lucía Etxebarria, Beatriz e os Corpos Celestes


Yet come to me in my dreams, that I may live
My very life again though cold and death
Come back to be my dreams, that I may give
Pulse for pulse, breath for breath:
Speak low, lean low
As long ago, my love, how long ago.

CHRISTINA GEORGINA ROSSETTI, Echo


"NO LUGAR DO MEDO"- Lucía Etxebarria, Beatriz e os Corpos Celestes

Lá onde começa o desejo, no lugar do medo, onde nada tem nome e nada é, antes parece.

CRISTINA PERI ROSSI, Desastres Íntimos


"LUZ DE UMA ESTRELA MORTA"- Lucía Etxebarria, Beatriz e os Corpos Celestes
Gostaria de pensar que existe alguma coisa certa no aforismo AMOR VINCIT OMNIA. Mas se alguma coisa aprendi nesta curta e triste vida é que essa frase feita é mentira. E o que nela acreditar, um insensato.

DONNA TART, O Segredo


FINAL - Lucía Etxebarria, Beatriz e os Corpos Celestes

You want a reason: I'll give you reasons, don't change your ideals with every season, just look inside yourself for information and make your own life a celebration, you've got the power, power to be strong, an education that should be lifelong, don't be a victim of expectations, just make your own life a celebration.


THE BELOVED, Conscience

 

"A CIDADE EM RUÍNAS"

O início do segundo capítulo de um dos livros preferidos da minha vida, marcou-me tanto que, nas mais variadas situações, quando falo com alguém em sofrimento, acabo por me lembrar daquele parágrafo e costumo referir-me a ele, embora sem o citar ipsis verbis que a minha memória não é assim tão prodigiosa e porque, na verdade, o que importa é a ideia.

Hoje, no entanto, é para mim que o quero lembrar. E retirei da estante o livro que está todo de folhas soltas, provavelmente pelos maus tratos que lhe dei nas vezes que o li. Porque a reverência com que trato os livros, não inclui cuidados com o objecto que são. Antes pelo contrário. Gosto de os vincar, riscar, deixá-los de lombada quebrada. Se um livro passa por mim incólume, pronto a ser leiloado no e-bay com a descrição "praticamente novo", é porque não me deixou absolutamente nada.

Por ser para mim, quero que estejam lá as palavrinhas todas, tal como as bebi. E, para que se gravem indelevelmente, quero deixa-las aqui escritas. Como se fosse uma cábula de harmónio como as que fazia para os testes mas que acabava por nunca usar, uma vez que a transcrição da matéria para o papel que dobraria cuidadosamente para enfiar em qualquer orifício de fácil acesso, era suficiente para que não mais me esquecesse do que lá estava.

"Não tentes enterrar a dor: estender-se-á pela terra, sob os teus pés; infiltrar-se-á na água que tenhas de beber e envenenar-te-á o sangue. As feridas fecham-se, mas ficam sempre cicatrizes mais ou menos visíveis que voltarão a incomodar quando mudar o tempo, lembrando-te na pele a sua existência e, com ela, o golpe que as originou. E a recordação do golpe afectará as decisões futuras, criará medos inúteis e tristezas vis, e crescerás como uma criatura apagada e cobarde. Para quê deixar para trás a cidade onde caíste? Pela vã esperança de que, noutro local, num clima mais benigno, já não te doerão as cicatrizes e beberás uma água mais limpa? Em teu redor erguer-se-ão as mesmas ruínas da tua vida porque, para onde quer que vás, levarás a cidade contigo. Não há terra nova nem mar novo, a vida que não aproveitaste ficará por aproveitar em qualquer parte do Mundo."

LÚCIA ETXEBARRIA, Beatriz e os Corpos Celestes

domingo, fevereiro 06, 2011

 

ÓBITO

Na terra onde nasci, faz-se uma festa quando morre alguém, É uma coisa que os "brancos" nunca perceberam muito bem, por mais cafrializados que tivessem ficado. Bebe-se, come-se, xinguila-se e chora-se muito. Esta parte é imprescindível e, para isso, contratam-se as carpideiras, talvez no que de mais próximo há com os enterros da província. Um morto tem de ser chorado. Aos gritos, em soluços e gemidos angustiantemente prolongados, acompanhados de arrepelar de cabelos e espasmos dos membros superiores e inferiores.

Nos meus mortos, nunca houve nada disso. Somos todos demasiado discretos, demasiado contidos na nossa dor para que nos permitíssemos tais figuras. De tal forma que, no enterro da minha mãe, de repente, a prima da empregada que havia começado a trabalhar na nossa casa há 15 dias, desatou numa gritaria que a todos assustou. Africana de origem, deve ter pensado que éramos uns desleixados, uns filhos ingratos, uma família miserável por deixar que aquele ente tão querido se fosse assim, sem o devido acompanhamento sonoro.

Sete dias depois, lá na banda, "varrem-se as cinzas". E há mais festa, muita comida e bebida, muita incorporação de espíritos, na verdadeira celebração da passagem que é a morte. Gente tão sábia aquela...

Eu não sei fazer nada disso. E devia. Porque, desde pequena, sempre achei que seria capaz de matar alguém, numa situação-para-mim-limite o que, necessariamente, me dá maior responsabilidade na forma como deveria cuidar do defunto resultante. A verdade é que só consigo imaginar-me a braços com o morto, literalmente. Sem saber como chorá-lo porque o decoro não me permite gritar, nem gemer, nem soltar sequer um inaudível soluço. Sem saber onde o guardar, sem ter a quem confessar que o homicídio cometido só foi porque teve mesmo de ser e que eu só quero tratar de tudo com a dignidade que o morto deveria merecer, embora tenha cometido a loucura de ceder à exaustão, acertando-lhe um tiro certeiro.

O problema é que, sem os rituais devidos, arrisco-me a ser perseguida pela sua alma penada e danada. O que me levará ao Inferno em vida.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

 

NA MANHÃ DE 4 DE FEVEREIRO

Os caminhos interiores, inevitáveis para a a nossa evolução, escolhemo-los nós. E, imprescindível para que que se façam, é a responsabilidade que assumimos perante as escolhas que vamos fazendo ao longo do percurso que, se bem feito, é tortuoso e cheio de atalhos que nem sempre sabemos a que nos conduzem. A única certeza que temos é de seguir em frente, ainda que, por vezes, acabemos num ponto por onde já passámos e tenhamos que lidar com a perda de tempo, de sensação de energia desperdiçada, de andar a dar voltas. Mas isso faz parte e é também caminho. É sinal de que temos de voltar atrás e escolher outro percurso. Claro que temos que nos disponibilizar para isso e aceitar como necessário e incontornável. E, é nessas alturas que nos faz bem lembrar o grande Frankl e exercer a última das nossas liberdades que é escolher como reagir perante as circunstâncias do destino. Sendo, iminentemente uma pregorrativa nossa, só a nós diz respeito. E não escutarmos o nosso coração, o corpo que nos dá sinais, as emoções que sentimos é que é o verdadeiro desperdício de vida. Acima de tudo, o que deve pautar as nossas decisões é o nosso querer estar bem, o sabermos defender-nos do que nos faz mal e não nos obrigarmos a aceitar o que nos dói, só porque sabemos que o caminho é de dor. Que é, com efeito. Mas dores há muitas e algumas não fazem outro sentido senão aniquilarmos a nossa vontade e passarmos por cima do que, em insconsciência, vemos como consequência lógica. A responsabilidade obriga-nos ao discernimento. e a sabermos destrinçar o trigo do joio, o necessário e o acessório, o dispensável e, até, o que pode ser destruidor. O respeito pelo outro não implica a surdez, a atitude autista perante o que o outro nos faz sentir, em prol da concretização de um objectivo, de alcançar a meta que temos em mente.

Os caminhos são únicos e individuais. Cedermos a acompanhar o caminho de outro, não pode implicar sofrermos com as escolhas do outro.

Para mim, é claro. Se puder fazê-lo, escolherei que seja sem dar o corpo às balas, sem me maltratar. Porque não é o outro que me faz mal. Sou eu que o permito.

E já sou boa demais, já me respeito o suficiente para me obrigar a ter essa clarividência e assumir as consequências. Tudo o resto roça o masoquismo bacoco que nada serve. Posso tenho uma vida plena, se assim o quiser, se a isso me permitir. Nada justifica uma atitude diferente. Só custa empurrar o amor para a barriga. Que é o lugar onde pertence e onde tenho que o alimentar.

Na minha terra, hoje canta-se que, neste dia, "os heróis quebraram as algemas". Poderá haver melhor imagem?

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

 

NOVO INQUILINO

Hoje aprendi que o amor não se guarda no coração. O peito é lugar demasiado perto da garganta, demasiado perto da boca. O que faz com que, ao pequeno descuido, se nos soltem pedaços, palavras, soluços, gemidos, queixumes, arroubos espampanantes de paixão e declarações de amor ardente. Que se perdem na intensidade da projecção com que são emitidos. Demasiada potência, cavalos a mais, num veículo que serve um percurso tão curto. Por outro lado, se voraz, também se alimenta com pouco e rápido, como um hipoglicémico que arriba por cinco minutos com um pacote de açúcar, para cair redondo de seguida.

O verdadeiro amor guarda-se mais abaixo. Algures entre o estômago e o baixo-ventre, parece que no plexo solar, que disso não percebo nada, embora devesse. Faz-me sentido. Afigura-se-me um lugar mais seguro. Nem entra nem sai nada inadvertidamente. Não está vulnerável aos caprichos do clima. Mantém uma temperatura mais ou menos constante. Conforta. Como uma sopa saborosa e quente num dia frio de inverno. E - disseram-me e eu acredito - este é um amor mais rico, mais completo. Se calhar por estar mais fundo em nós, é amor pelo outro mas também amor pelo próprio. E, por isso, nunca nos deixa ficar mal, nunca nos falta, não nos abandona. Não se nos escapa boca fora, ao primeiro bocejo de tédio ou ao primeiro arranco de dor. Também é mais perene. Não se volatiza. É de confiança, no fundo.

O problema surge quando o espaço para esse amor está ocupado e ele é obrigado a morar no andar de cima, à face da rua ou, nos casos mais graves, nas sombrias águas-furtadas da caixa craniana. Nessas situações impõe-se a emissão da ordem de despejo do inquilino ilegítimo, sem recurso à usucapião, sejam quantos forem os anos de ocupação. Mas é um processo que tem de ser bem conduzido. Primeiro, há que conhecer muito bem o indesejável sujeito. Torná-lo objecto de desvelado estudo. Usar de todas as artimanhas para lhe conquistar a confiança. Saber dele o mais possível. Dominar-lhe a razão de existir. Levá-lo, com recurso ao que for necessário, à nudez total, à palma da nossa mão. E, nesse momento, sem hesitações, desferir o golpe de misericórdia, doa o que doer. Doa a quem doer. Doa como doer.


Hoje, precisei de me irritar muito contigo, mãe. Já chega de me apareceres em sonhos sempre com um ar descontente, tu que tinhas um dos sorrisos mais bonitos que já vi. Aquele espaço que ocupaste já não é teu. Preciso dele, mãe. Estou a pôr-te fora, mais às tuas expectativas em relação a mim, mais à minha falta de segurança e ao meu estado de alerta permanente, como se pudesse assegurar-te de que nunca seríamos apanhadas de surpresa.

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